Livros

Sinuca embaixo d’água

Personagens narram um momento de luto, depois que Antônia, uma garota na casa dos vinte anos, morreu num acidente de automóvel

– 13/09/2009

SINUCA EMBAIXO D’ÁGUA
Carol Bensimon
144 páginas
Companhia das Letras, 2009


A minha romancista

Fiquei um pouco receoso em escrever uma crítica ao romance de estreia de Carol Bensimon, Sinuca embaixo d’água, logo depois de terminar a leitura de Os irmãos Karamázov, que para muitos e distintos é o melhor romance já escrito (não sei, mas é certamente o melhor que já li). Desfiz meu receio, entretanto, depois de ler um ótimo trecho publicado na Bravo! do mês passado e constatar que meu receio era infundado. Creio que não me arrependi de um dos meus poucos atos de bravura nesta vida, e vou tentar agora explicitar meus motivos sem desfazer qualquer prazer que certamente terão com a leitura.

Em um cenário de gradativo esfacelamento, o romance traz três personagens em um primeiro plano: Camilo, Bernardo e Polaco. Os dois primeiros são jovens que lidam com a morte precoce de Antônia, irmã de Camilo e amante do Bernardo. O terceiro é dono de um bar próximo à casa de Bernardo. Polaco saiu há muito tempo, em delicada fuga, de uma cidade do interior. Entre Bernardo e Camilo há claramente uma tensão desde o princípio e que se intensifica, a respeito da atenção que Antônia lhes dispensava enquanto vivia. Postumamente, esse conflito erige uma requintada relação de culpa, raiva e tentativa de entendimento que move as personagens ao longo do romance. O dono do bar, por sua vez, parece quase estar em um segundo plano no começo do livro, mas ganha tanta força no decorrer da trama, em importância e caracterização, que acabou me soando ser tão importante – como uma espécie de mediador – quanto os dois jovens. Ao redor desses três, há também outras personagens, algumas delas tomando a palavra (narradores), que permeiam o romance e enriquecem-no consideravelmente.

Bom, isso é o básico. Básico, aliás, que muitos romancistas, principalmente contemporâneos, sequer alcançam, ou seja, um básico que dá muito trabalho. Para além disso, não posso deixar de notar que as personagens são muito bem construídas, sejam as centrais, onde os enredos se assentam, sejam as periféricas, que contribuem com perspectivas pontuais sobre Antônia ou sobre a história pregressa do dono do bar. Confesso que gostaria de que Polaco fosse um pouco mais rude em seus pensamentos. Há também uma considerável força de estilo, desenvoltura de prosa, que chama demais a atenção. Períodos como “tomando a cerveja em grandes goles de querer morrer” e “que nas descidas a gente pode sentir a vida mais do que deveria, e acabar morrendo disso?” são comuns no livro e sempre testemunham a favor do grande talento da escritora. Por fim, também se destaca algo que chamo, nada teoricamente, de perspicácia narrativa, ou “aqueles trechos que fazem sorrir o leitor pela engenhosidade”. Em vários momentos fiquei fascinado pela prosa e isso conta muito pra mim, já que sou velho leitor, embora não seja um leitor muito velho, e cada vez fica mais difícil esse tipo de sorriso (também os outros, mas isso não vem ao caso).

Mas nenhuma ressalva? Nenhuma? Sim, uma, uma só, e também uma dúvida. Minha ressalva é que a romancista nomeia o narrador antes de cada capítulo e isso me soou um pouco populista. Explico-me: claro, entendo que é o primeiro romance e a maioria dos leitores precisa dessa muleta narrativa, mas ficaria tão mais virginiano (antes dos Karamázov, andei me deliciando com To the lighthouse) que essas indicações viessem no texto e não no título! Tem uma excelente contista brasileira, já premiada e tudo, Vilma Arêas (também ótima professora), que poderia servir à romancista nesse sentido, já que ela faz um interessante uso dos títulos em seus contos. Enfim, pelo talento da autora, tenho certeza de que ela pensou e escolheu colocar os narradores no título, e deve ter seus motivos para isso. Complementarmente, minha dúvida é sobre o uso do diálogo direto por travessão ou no interior do fluxo de consciência. Aventei algumas hipóteses para a oscilação, mas ao fim, após testá-las, acabei concluindo que a escolha se dá pela fluência do texto, sem grandes razões metafísicas para tal. Se acertei ou errei, os futuros estudiosos, que haverá, me darão ou não razão.

O que gostaria de deixar com a minha leitura, sobretudo, é uma impressão que há tempos eu procurava em artistas contemporâneos, e o que nomeia esta resenha. Além da incrível descrição de mim, perdão pela licença, que ela dá ao falar de Bernardo na página 116, eu poderia chamar Carol Bensimon de a minha romancista, posto que ela elabora esteticamente a realidade deste tempo em que vivo. Amo Drummond, Guimarães Rosa, João Cabral, Machado, Chico e Caetano, mas sempre acho que eles falam perfeitamente, só que de outra coisa, de outro tempo, não de mim! Desta fragmentação, desta não sintonia, desta memória de culpas inafiliáveis etc. a romancista fala muito bem, excepcionalmente, e nem é explicitamente seu tema.

Além de tudo isso, o título da obra é ótimo!


* Poeta, especialista e mestrando em Literatura Brasileira. Escreve para o Trombone, blog de crítica de arte.

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