O LIVROS DAS COISAS PERDIDAS
The book of lost things
John Connolly
Tradução de Cecília Prada
364 páginas
Bertrand Brasil, 2012
O escritor irlandês John Connolly busca nos contos de fadas a matéria-prima para escrever uma história de aventura e fantasia que aborda temas como família, dor da perda e passagem para a vida adulta.
O protagonista do livro é David, um garoto de 12 anos que adora contos de fadas e histórias folclóricas. Devido a uma grave doença, a mãe do protagonista morre. David fica arrasado, pois acreditava que poderia mantê-la viva. Ele tentara de tudo, inclusive chegou a criar e seguir estranhos rituais como pisar primeiro com o pé esquerdo ou tocar maçanetas e torneiras um número par de vezes.
Quando percebe que o pai pretende se casar novamente, David passa a sofrer crises de desmaio e a ouvir vozes vindas dos livros. Mais adiante, o garoto também começa a ouvir a voz da falecida mãe e a sonhar com paisagens e seres de um mundo estranho e sinistro.
O garoto e o pai deixam a antiga casa para irem morar no casarão de Rose, a nova esposa do pai. Para piorar a situação, a madrasta de David acaba tendo um bebê, o pequeno Georgie. Uma mistura de raiva e ciúme toma conta do protagonista. David culpa a madrasta e o irmão por atrapalharem a vida dele e do pai. O garoto acredita que Rose e Georgie estão tentando separar ele e o pai.
No casarão David fica com o quarto que pertenceu a um tio de Rose. Lá o protagonista encontra livros muito antigos com histórias de fadas estranhas e sinistras. Assim como David, o antigo dono do quarto, Jonathan Tulvey, gostava de contos de fadas, mitos e lendas. Quando tinha 14 anos, Jonathan desapareceu misteriosamente junto com a irmã adotiva Anna.
A situação também está difícil fora do casarão onde David mora. A trama de Connolly é ambientada na Inglaterra do começo da década de 1940, durante a Segunda Guerra Mundial. As cidades inglesas vivem em clima de medo, pois estão sob a ameaça dos ataques dos aviões alemães. As notícias sobre o avanço das tropas de Hitler pela Europa continental preocupa a todos.
Talvez o fato de David ser uma criança com vida familiar problemática e viver em uma época de guerra faça o leitor se lembrar do filme O labirinto do fauno. A protagonista, uma garota chamada Ofélia, busca na imaginação e nas histórias de fadas uma forma de lidar com a dura realidade que a cerca. Ofélia é desprezada pelo padrasto, um capitão franquista que combate rebeldes contrários ao regime ditatorial do general Franco na Espanha.
Porém, a viagem que será feita por David não é uma busca de refúgio em um mundo imaginário. Quando viva, a mãe do garoto disse a ele que as histórias ganhavam vida quando eram contadas ou lidas. Ela também falou sobre um mundo paralelo ao nosso onde os contos de fadas, mitos e lendas são tão reais quando as pessoas. Às vezes, a fronteira que separa os dois mundos fica frágil, e eles acabam se fundindo.
Após ter uma forte discussão com a madrasta e ser posto de castigo pelo pai, David ouve os pedidos de socorro da mãe morta. Ela diz estar presa em um mundo desconhecido e quer que o filho vá resgatá-la. Entrando em um buraco no muro do jardim, David inicia sua jornada por um mundo onde as criaturas fantásticas são reais.
O mundo que o jovem protagonista encontra é totalmente diferente daquele apresentado nas histórias que lia. O clima de alegria é substituído pelo de medo. Criaturas cruéis e sanguinárias andam pelos bosques escuros matando crianças e viajantes incautos. Para cada criança morta, nasce uma estranha flor que grita de pavor e se esconde. Se não fosse a ajuda do Lenhador, David teria virado refeição de um bando de Loups (lobos-homens).
Para poder voltar para casa, David terá que encontrar o rei que governa este mundo sombrio e sinistro. O monarca possui o Livro das Coisas Perdidas, um objeto mágico que guarda décadas de sabedoria e que traz soluções para os momentos de crise. Talvez o livro possa ajudar David a voltar para casa. A jornada do garoto até o castelo do rei não será fácil. Além da perseguição dos Loups, cujo líder quer se tornar o novo rei, David precisará enfrentar um ser astuto e maligno conhecido como Homem Torto. Apesar de ajudar o protagonista em alguns momentos, as intenções do estranho homem são claramente malignas. O vilão quer que David se encontre com o rei. O que pretende com isso é um mistério.
Dos personagens que David encontra pelo caminho, dois merecem destaque: o Lenhador e o cavaleiro Rolando. Com eles, o garoto aprende importantes lições sobre coragem, amizade, companheirismo e amor. Esses ensinamentos farão David refletir sobre suas atitudes em relação à morte da mãe e ao convívio com a nova família, além de prepará-lo para enfrentar o Homem Torto. O vilão não tem qualquer escrúpulo em usar como armas a dor, a raiva e o medo de David.
Um dos atrativos do livro são as versões sombrias dos contos de fadas criadas pelo autor. Connolly busca inspiração nas origens dessas histórias clássicas. Originalmente, os contos de fadas eram destinados para o entretenimento dos adultos. Apesar conterem ensinamentos morais e de regras sociais, as histórias traziam mortes violentas, estupros, incesto e outros assuntos considerados impróprios para crianças.
As versões de Connolly são mais leves que as originais, mas ainda causam espanto. No livro, Chapeuzinho Vermelho seduz o Lobo Mau e tem um filho com ele. Leroi, o líder dos Loups, é fruto dessa estranha união. Cachinhos Dourados foi devorada pelos ursos. Branca de Neve está muito longe de ser a encantadora e bondosa jovem que todos conhecem. Cansados de serem explorados e maltratados por ela, os anões viraram socialistas e tentaram matá-la, jogando a culpa na Rainha Má. O encontro de David com anões e Branca de Neve é o único momento de humor na trama.
Apesar de começar com o tradicional “era uma vez”, o livro não termina como os clássicos contos de fadas, com o célebre “viveram felizes para sempre”. Com certa dose de lirismo, a parte final da obra mostra as consequências da jornada de David na vida adulta dele.
Ao fazer seu jovem protagonista cruzar a fronteira entre o real e o fantástico, John Connolly mostra em O livro das coisas perdidas como os contos de fadas podem ser assustadores, o quanto é doloroso perder um ente querido e como a passagem para a vida adulta é difícil. Connolly utiliza um estilo simples, porém elegante e envolvente, para narrar a jornada do garoto David. Um livro digno de estar na lista dos melhores lançamentos de 2012. Os verdadeiros amantes de boas histórias irão ler O livro das coisas perdidas muito antes que ele vire filme.
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