Livros

Livre para ser preso

Um fazendeiro atormentado pelas traições da falecida esposa e um fugitivo apaixonado por uma boneca são os protagonistas dessa história pertubadora

– 13/12/2009

LIVRE PARA SER PRESO
Afobório
84 páginas
Multifoco, 2009


Ele usa uma balaclava enfiada na cabeça, tem um blogue feito de carniça, acredita que estamos mais perto do inferno do que do céu e escreve sobre o lado escuro da vida.

Estou falando, é claro, do escritor gaúcho Afobório, pseudônimo de Alexandre Durigon, 31 anos, que acaba de lançar seu livro de estreia, Livre para ser preso, pela editora carioca Multifoco.

Acostumado a escrever contos, Livre para ser preso é sua primeira narrativa longa, e já chega surpreendendo e mostrando que veio para ficar – por mais que isso incomode os politicamente corretos e românticos de plantão.

Afobório criou uma novela com os elementos práticos e sucintos da produção do contista que sempre foi: nada sobra e nada falta na engenhosa história de Alencar e Jorge, seus perturbados protagonistas.

O primeiro, um fazendeiro mais pedante que esperto, sofre pelos chifres que sua falecida mulher colocou em sua testa. O outro, fugitivo da polícia, é completamente apaixonado por uma boneca e acredita piamente ser uma onça pintada.

O enredo lhe pareceu absurdo? E é.

Isso até que se comece a ler a extraordinária história de dois homens que desafiam sua própria humanidade, e lançam mão de uma guerra particular onde só cabem dois soldados, buscando na selvageria qualquer coisa que os aproximem dos homens que nunca foram.

Diferentemente de muitos autores de suspense e literatura fantástica – que acabam apenas refazendo o que já foi feito – Afobório não busca em escritores consagrados nem em filmes do gênero inspiração para suas histórias.

Sua matéria-prima é a vida que ele enxerga pela janela de sua sala:

Escrevo coisas que vejo e encontro nas pessoas. Acredito que as estórias que desenvolvo têm um bom fundo de verdade. Se você prestar atenção à sua volta, verá que o que não falta são bizarrices. O mundo é feio, mas a maioria das pessoas reluta contra isso e o pintam de bonito para disfarçar o que incomoda e envergonha a sociedade. Eu vejo as coisas por outro lado. É por isso que exploro o lado negativo do ser humano, e da vida.

E é isso que encontramos em suas histórias, abundantemente: realismo e verdade.

E é também exatamente isso que mais perturba na literatura de Afobório.

Tudo que está escrito é passível de se tornar real.

Esta proximidade sinistra e sensacional que o autor possui com a realidade dura, crua e assombrosamente nua, torna seu blogue um espelho que reflete o lado negro e os becos e vielas de uma vida que não gostamos de ver nem de assumir que existe. Lá estão publicados mais de 100 contos, escritos entre 2007 e 2009, e cada um possui em suas linhas uma infinidade de personalidades e situações que nos deixam com a incômoda sensação de pertencermos àquilo tudo.

Segundo a escritora Jana Lauxen, responsável pelo prefácio desta delirante edição, enquanto lia os originais da obra, mais de uma vez se pegou embrulhada, enjoada, desconfortável:

Diversas vezes precisei parar para retomar meu fôlego, e me certificar de que o mundo lá fora não havia se transformado em uma perseguição convulsiva e furiosa, onde homens se confundem com bestas feras e sentimentos se viram ao avesso para comprovar o que todos nós sabemos, mesmo sem gostar: existe um bicho faminto e intolerante dentro de cada um de nós. Um animal irracional e violento, bruto, impetuoso, preocupado exclusivamente com sua sobrevivência, desprovido de tudo aquilo que acreditamos nos tornar humanos. A história de Alencar e Jorge é, também, a história de todos os homens que deixaram para trás sua civilidade e sua compaixão, e mesmo assim continuam infiltrados no coração de uma sociedade aparentemente organizada, instituída e solidária – a sociedade onde eu e você vivemos, e onde nos sentimos muito, muito seguros.

Apesar das sensações e sentimentos pouco ortodoxos que Afobório desperta em seus leitores, tratamos aqui de literatura de primeira linha. Raros são os autores atuais que se dispuseram a retratar aquilo que poucos de nós gostam de assumir.

E Afobório não somente faz isso, como faz muito bem feito.

Livre para ser preso, tais como os contos que frequentemente disponibiliza em seu blogue, possui o refino ideal para retratar histórias de horror e violência sem apelar para efeitos literários especiais ou ganchos ordinários: ele não choca o leitor com brutalidades óbvias e apelações previsíveis.

Afobório é o sujeito certo, na hora certa, escrevendo exatamente o que deve e sabe escrever.

E para os amantes de literatura policial, de suspense e de horror, só resta levantar as mãos para o céu e agradecer a Deus pela existência de um autor tão bom naquilo que nos faz tão mal.

Agradecer a Deus, ou ao Diabo, é claro.


* Gabriel Nepomuceno Vieira, 31 anos, é formado em Letras pela Unisinos, ministra oficinas de redação criativa, escreve para publicações alternativas, gosta de livros, discos, filmes e mulheres altas.

Comentários (6)
  1. Manuela

    13 de dezembro de 2009 - 21:18

    Leio Afobório faz muito tempo, e fico feliz que finalmente ele nos dê de presente um livro seu, só seu. Vida longa ao Afobório e a boa literatura policial e de horror! Resenha ótima!

  2. Cassiano

    14 de dezembro de 2009 - 14:12

    finalmente o homem feito de carniça nos apresenta seu livro. já estou encomendando o meu.

  3. fabricio

    14 de dezembro de 2009 - 15:55

    Bota pra foder, meu velho.

  4. Soninha.

    11 de janeiro de 2010 - 15:20

    Um presente para quem gosta de literatura de terror. Afobório não inventa, ele segura o que existe, transforma em letras e embrulha estômagos Brasil afora. Sem dúvidas, um dos grandes de sua geração. Ah! E seu livro é fenonemal. Já li e garanto.

  5. Alessandra

    18 de janeiro de 2010 - 18:34

    Só posso dizer uma coisa: não leia antes de jantar. Risco de perder a fome. Horrivelmente maravilhoso. Afobório manda muito bem.

  6. Emanuela

    19 de junho de 2011 - 20:04

    Um horror, uma pessoa que transfere seus fracassos para folhas de papel…com medo da realidade…no fundo Afobório sempre soube que estava sozinho, mal sabe ele que as pessoas não são verdadeiras, como ele não é…..que horror

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