1
Norte de Portugal, 1916
Manuel levantou-se com as estrelas ainda no céu. Tinha mais um dia duro pela frente e, em breve, mais uma boca para alimentar. Seria pai pela primeira vez e a qualquer momento, prevenira a parteira. A vida corria certeira, no trilho.
Ele se casara com Josefina, a mulher que amava. O bebê seria o primeiro de uma grande prole. Era o início da colheita das uvas. Prometia ser boa, a melhor em anos. O tempo definitivamente tinha colaborado. Um inverno rigoroso, seguido de um verão com muito sol e um começo de outono sem chuva. O que mais se podia querer? Os cachos gordos, maduros, estavam prontos para a colheita.
A quinta ficava nos arredores de São Lourenço de Sande, no município de Guimarães. A construção em granito fora erguida pelo pai. Cada pedra da casa tinha uma gota de suor do velho Joaquim. A casa de dois andares ficava no centro do terreno, cercada pelas parreiras. Uma a uma plantadas por Joaquim.
Quando Manuel nasceu, a mãe passava dos trinta, e Joaquim dos quarenta. A criança ter vingado era um milagre depois de tantos bebês perdidos. O menino cresceu, virou um homem forte, de mãos grandes e calejadas que não fugiam da enxada. O solo seco e poroso da quinta era uma benção para as videiras. As panturrilhas musculosas carregavam os pés largos e achatados de tanto esmagar as uvas na piscina de pedra.
Agora, tudo aquilo seria do filho, ou da filha. Era incrível a esperança que tomava conta do casal. Apesar de a Alemanha ter declarado guerra a Portugal, e de o Parlamento ter aprovado a entrada no confronto, Manuel tranqüilizava a esposa. Ele não seria convocado, as batalhas se davam longe do território português e tinham alimentos suficientes estocados para vários invernos e verões. Josefina acariciava o rosto dele. Ela amava aquele homem forte, tosco, de mais ação que palavras. Ele vivia em um mundo de regras próprias. O mundo era a quinta. O território de dentro da casa era chefiado por Josefina, o de fora, por Manuel. Os dois comandantes respeitavam as fronteiras.
Enquanto Josefina temia pelo futuro do bebê a caminho, por uma guerra recém-declarada, pelos que seriam obrigados a lutar e a morrer sem convicção, pelos que passariam fome, Manuel amassava as uvas. Nada poderia quebrar, desestruturar a ordem com que ditava a vida. Se, na mais improvável das hipóteses, Portugal fosse invadido, ele poria as tropas alemãs para correr com seu exército de um homem só. Manuel só não estava preparado para a tragédia que aconteceria em seguida.
2
Josefina não teve forças para abrir os olhos, mas esboçou um sorriso e apertou a mão do marido quando ele levantou da cama ainda com o dia escuro. Manuel acariciou o rosto dela, beijou-lhe a testa e sorriu de volta. Ela não viu, mas sentiu o sorriso dele, já estava embalada no sonho.
Um sonho daqueles que, a princípio, trazem conforto e vontade de não voltar. Josefina já não tem mais a barriga, Manuel amassa as uvas, duas meninas correm pela quinta, correm em direções opostas. Ela não se preocupa porque estão ao alcance da vista. O céu é azul, sem nenhuma nuvem. Ela aproveita ao máximo a sensação de ter todos ali. Subitamente percebe que já é mãe. Serão as meninas suas filhas? De repente, sente um pingo, seguido de outro. Corre, mas não há onde se proteger. Os pingos são vermelhos. Os pingos são vermelhos de sangue. Ela não vê mais as meninas. Manuel espreme as uvas e delas sai o mesmo vermelho de sangue. Ela grita por Manuel. Grita com toda a força.
Josefina abriu os olhos. O corpo estava encharcado.
– Tudo vai ficar bem, minha querida. O doutor está a caminho – Manuel disse, em meio ao abraço.
As palavras saíram sem convicção. Fora tudo muito rápido. Os gritos no quarto, a correria escada acima, a agonia de Josefina. O menino, filho da criada que contratara para ajudar a esposa quando a barriga já atrapalhava os cuidados da casa, brincava entre as parreiras. Da janela mesmo gritara.
– Voa até a vila e traz o doutor, é caso de vida ou morte… e diz à tua mãe para vir aqui!
O garoto partiu em disparada. Em segundos, a criada estava no quarto. Desapareceu e voltou em seguida trazendo uma bacia com água e muitos panos. Foi nesse momento que Josefina viu o sangue. Os pingos do sonho cobriram a cama de vermelho. Ela gritou. Não era sonho, as meninas desapareceram de sua vista. Tudo ficou subitamente escuro.
Josefina estava pálida, os lábios arroxeados, os olhos fechados. O médico entrou no quarto e pegou o pulso. Não foi preciso dizer nada. Ela estava morta.
– Temos de salvar a criança! – o doutor gritou, enquanto sacava um bisturi da maleta. Não era a primeira cesariana que fazia, mas nunca antes numa mulher sem vida.
Fez o corte longitudinal, rápido e preciso. Em menos de um minuto, tirou o bebê. Quem pegou a criança foi o garoto. Manuel já havia deixado o quarto. Não amaria aquela criança. Iria dar-lhe seu nome, alimentá-la, educá-la, mas amor era algo que tinha secado dentro dele.
O médico suava frio, as gotas escorriam pela lateral do rosto. Mal teve tempo de pegar o lenço. Havia outro bebê ali. Assim como a irmã, a segunda menina soltou o choro forte e alto. A sutura foi feita com todo o cuidado. Por um breve instante, lhe pareceu que Josefina sorria.
E assim Clarice e Olívia vieram ao mundo. Primeiro Olívia, depois Clarice. Ou teria sido primeiro Clarice e depois Olívia? Eram apenas as gêmeas, chamadas pelas cores das roupas que usavam. A de amarelo, a de branco. Ganharam nome quando a avó materna, que morava na cidade da Guarda, na região da Beira Alta, chegou, dois dias depois do nascimento. Mal teve tempo de chorar a filha única. Dava dó ver as meninas berrando de fome, aos cuidados de uma criada sem intimidade com a casa. Tinha arranjado às pressas uma ama de leite, mas não era suficiente para os dois pequeninos seres ávidos de vida.
Manuel se trancou no quarto no momento em que ouviu o médico gritar que tinha de salvar a criança. Para ele, Josefina é que tinha de ser salva, era ela que ele amava desde sempre. Filhos eram consequência, a ordem natural das coisas. Josefina era a escolha, a vida a dois, a vida eterna. E não uma, mas duas crianças. Por causa delas sua mulher tinha morrido. Por mais que quisesse ou tentasse, jamais amaria aquelas meninas.
Dona Bernarda, uma sogra bem lúcida, pensou de imediato. O genro era um homem trabalhador, correto, viúvo jovem com duas recém-nascidas. Não faltariam pretendentes. Ela sentia pela filha, mas era o que tinha de ser. Manuel se casaria novamente, com uma mulher quase menina, provavelmente virgem, que criaria as gêmeas como se fossem dela e daria continuidade à prole. Ele logo deixaria o quarto e o luto.
Passados dez dias, Manuel permanecia em silêncio. Trabalhava de sol a sol, sem dizer uma palavra, comia pouco e dormia cedo. Não foi ao enterro nem à missa de sétimo dia. Sequer olhava os bebês, que diria toca-los. Era como se não existissem. Nem do choro reclamava. Foi quando a sogra, num misto de impaciência e raiva, foi direto ao assunto.
– Manuel, escuta, tu perdeste a esposa, eu perdi minha filha querida. Não podemos fazer nada. Mas estas crianças estão aqui, e também perderam a mãe. Elas precisam do pai, elas precisam de um nome! – exclamou, enquanto apertava as mãos do genro.
Manuel levantou os olhos. Não havia lágrimas, apenas um vazio salpicado de tristeza e desânimo.
– Pois dê a senhora o nome às meninas, porque, se for eu a fazê-lo, os nomes hão de ser dor e infelicidade. – Levantou-se e deixou a sala rumo às parreiras.
A sogra respirou fundo e segurou o choro. Voltaria à Guarda para fechar a casa e mudar-se de vez para a quinta. Era viúva e, a partir de agora, só tinha as meninas, e as meninas a ela. Seriam suas filhas, lhes daria todo amor que tivesse e que viesse a ter. Escolheu os nomes, sem pensar muito. Nomes de que a filha gostava: Clarice e Olívia.
A avó cumpriu a promessa. As meninas foram crescendo sob asas enérgicas e, ao mesmo tempo, amorosas. Mal viam o pai, que, se por um lado as ignorava, por outro não lhes deixava falar nada. Sentavam-se juntos durante as refeições, única exigência de dona Bernarda. Ele chegava calado, comia, os olhos sempre baixos, jamais encarava as filhas. Apenas uma vez foi ríspido. Num almoço de domingo – teria sido Clarice ou Olívia? –, uma delas tentou tocar o vasto bigode que lhe cobria o lábio superior. Manuel afastou rapidamente a pequenina mão e gritou para que jamais o tocassem. Não importava se foi Clarice ou Olívia, o fato é que as duas cumpriram a ordem à risca. Tinham pouco mais de cinco anos. Naquele dia perceberam que, além de não terem mãe, também não tinham pai. E o que importava, se afinal a avó valia por todos?
A vida seguiu assim até perto dos treze anos, quando de fato perderam Manuel. Morreu dormindo, sorrindo. Ia encontrar sua Josefina. Ao verem o semblante do pai tão sereno e alegre, Clarice e Olívia soltaram uma gargalhada. Pela primeira vez, beijaram o pai, beijaram muitas vezes, e também o abraçaram. Ele agora ficaria em paz e feliz.
Luize Valente é jornalista. Trabalha há mais de vinte anos com edição de texto em televisão. É autora, junto com Elaine Eiger, do livro Israel rotas e raízes (1999) e dos documentários Caminhos da memória – A trajetória dos judeus em Portugal (2002) e A estrela oculta do sertão (2005). A estreia na ficção foi com o romance O segredo do oratório (Record, 2012).
Lançado em 2015 pela editora Record, Uma praça em Antuérpia, assim como O segredo do oratório, aborda a temática judaica. Ambientado nos dias de hoje e durante a Segunda Guerra Mundial, o livro conta a saga de duas irmãs gêmeas portuguesas, Olívia e Clarice. Olívia se casa com um amigo de infância e tem planos de vir morar no Brasil. Já Clarice se casa com um judeu alemão e vai morar em Antuérpia, na Bélgica. Ambas vivem felizes com os respectivos maridos e filhos até a guerra começar e a Bélgica ser invadida. Para escapar dos nazistas alemães, a família de Clarice irá contar com a ajuda do cônsul português Aristides Sousa Mendes, diplomata que salvou milhares de judeus e não judeus emitindo vistos de trânsito para Portugal, em 1940, enquanto atuou em Bordeaux, na França. A família recebe o visto, mas, ao chegar à fronteira de Portugal, algo trágico acontece. A vida das duas irmãs será marcada para sempre por um segredo que só será revelado sessenta anos depois.
Texto publicado na edição 1 da revista Eels.
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