O caminho ao trono
E o trânsito seguia lento, a viagem também, desde o princípio todas as questões já constavam, enigmas sobre o transitório e o eterno, dúvidas de medo e de vontade embora Dóris ainda não percebesse. Como ela poderia saber se antes precisaria aprender coisas que ninguém sabe saber, e que ninguém pode ensinar? Haveria realmente um destino a ser percorrido se alguns iam e outros nem mesmo voltavam? Alguns diziam “eu fui”, outros falavam de almas e reinos, enquanto sábios senhores, muito crentes em seu saber, falavam de energia e da vida, da morte e do cálcio. Quem tiver curiosidade em conferir poderá consultar os diários de bordo e apurar que a viagem rumo à cruz (ou à forca) era uma questão de curvas, via sacra e calvário. Saber que no começo das horas daquele lindo percurso os primeiros raios de sol da manhã já encontravam o dia desperto. Dóris dormia como quem prescinde de um mundo exterior.
Tantas imagens de tudo que era tão novo, tudo passava como que em branco, no banco rente à janela com um olhar que nunca fixa, Dóris viajava em uma tela surreal mais que abstrata. Em seus sonhos, restos diurnos e desejos de ter todos aos seus pés, ter o alimento sagrado em sua boca e o calor necessário para continuar sentindo-se aquecida. A boca era o princípio, o corpo era a boca. Havia o mundo todo para ser devorado, e o resto apenas algum tipo de prazer e de tensão. Aquele instante correspondia à boca… Alimentada, voltou a dormir.
Não sabia, mas era certo que aquele trajeto e todos os tipos de cuidados que recebera, acabariam por constituir o início de um reinado. Descalça e sem príncipe era estranho que tantas pessoas estivessem ali ao seu dispor só para servi-la e, ao entender o que se passava, Sua Majestade não perdeu tempo e gozou dos privilégios. Dóris estava a caminho do trono para ser coroada.
Acordou, olhou, olhou e percebeu algo novo, sem saber que despertava de um sonho. O onírico deixou rastros que apontavam o caminho a seguir, indicando o rumo de tudo que havia investido em sua boca.
Sem entender como, percebeu que algo já não lhe pertencia e o alimento transformado em resto era apenas a condição da metamorfose. Entrada e saída, construindo com pequenas marcas, traço a traço, tijolo por tijolo um desenho (i)lógico, às margens de um novo corpo. O alimento pedia passagem e, tal qual poesia, se organizava em estranhos versos gastrintestinais. Como a dizer:
Primeiro eu entro pela tua boca, esôfago
me aperto em teu peito
Em ácidos me deito e dissolvo o corpo
que me engole é o meu leito
Segundo mil pedaços de mim mesmo
resolvo que não sou mais quem eu era
E a fera que se afoga em meu peito é
resto e destina rumo ao reto
De mim o que absorves é meu nada
pedaços de produto sem valia
E indigesto sigo a caminhada mais um
dejeto que encontra o dia
Terceiro saio assim pela dos fundos
“tem gente” grita a moça apavorada
Me encontro novamente neste mundo e
através de ti a nova estrada
O quarto é o lugar da longa ceia lá onde insisto
em ser devorado
Em ti além de tu em tuas veias e através de ti
um novo estado
Primeiro eu entro pela boca!
Oneide Luiz Diedrich nasceu em Toledo (PR). Psicólogo com formação em psicanálise, também é compositor e vocalista da banda Pelebrói Não Sei. Tem textos publicados no jornal Cândido, nos cadernos Tulipas Negras e na revista Jandique. Réquiem para Dóris é seu livro de estréia.
Publicado pelo selo Encrenca Literatura de Invenção em 2013, o romance Réquiem para Dóris traz o percurso existencial de uma mulher (Dóris), desde a gestação até a fase adulta, cujo fim é trágico. O autor se aventura na exploração sensorial e sinestésica, através da confluência de tempos (presente e passado) e de morte e vida. Manipulando conceitos da psicanálise e brincando com o ato da leitura (direta e por camadas), Oneide Diedrich equilibra a percepção poética da existência e elementos de ordem mundana numa história em que delírio e realidade caminham juntos. O livro pode ser adquirido na loja virtual do selo Encrenca.
Texto publicado na edição 1 da revista Eels.
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