Romances (trechos)

O súdito

Diederich Hessling era uma criança sensível, que adorava sonhar, tinha receio de tudo e sofria de dores no ouvido. No inverno, não gostava de sair da sala quentinha nem, no verão, do jardim estreito que cheirava a farrapos vindos da fábrica de papel e cujos laburnos e lilaseiros eram assombreados pelas velhas casas de enxaimel. […]

– 04/04/2015

Diederich Hessling era uma criança sensível, que adorava sonhar, tinha receio de tudo e sofria de dores no ouvido. No inverno, não gostava de sair da sala quentinha nem, no verão, do jardim estreito que cheirava a farrapos vindos da fábrica de papel e cujos laburnos e lilaseiros eram assombreados pelas velhas casas de enxaimel. Às vezes ele se assustava muito quando erguia os olhos de seu livro de contos de fada, um de seus prediletos. Ao lado dele, sobre o banco, era realmente um sapo que se sentava, e da metade de seu tamanho! Ou lá perto do muro havia um gnomo enterrado até a barriga, que o espiava!

Mais terrível que o gnomo e o sapo era o pai, e ainda era preciso amá-lo. Diederich amava-o. Sempre que mentia ou pegava comida às escondidas, comprimia-se à escrivaninha, mastigando tanto e tão alto, movendo-se timidamente para lá e para cá em volta dela, até que o Sr. Hessling percebesse o que havia e pegasse a vara da parede. Cada travessura que não viesse à tona impunha dúvida à lealdade e confiança de Diederich. Uma vez, quando seu pai caiu da escada com sua perna inválida, o filho aplaudiu tresloucadamente – e saiu correndo dali.

Se ele passava pelas oficinas de trabalho com o rosto inchado, gritando depois de ser castigado, então os operários davam risada. Imediatamente Diederich mostrava-lhes a língua e pisava firme. Ele tinha consciência: “Eu levei uma sova, mas de meu pai. Vocês ficariam contentes se também pudessem leva uma sova dele. Mas nem para isso vocês servem.”

Movia-se entre eles como um paxá de humor instável: num momento ameaçava-os de contar ao pai que haviam ido buscar cerveja, em outro deixava-se adular, todo coquete, até contar-lhes a hora em que o Sr. Hessling deveria chegar. Tomavam cuidado com seu chefe: ele os conhecia, tinha sido ele mesmo operário. Produzira papel grosseiro em fábricas artesanais, em que as lâminas eram modeladas à mão; lutara em todas as guerras e, depois da última, quando teve dinheiro, conseguiu comprar uma máquina de papel. Uma holandesa e uma máquina de cortar completaram o equipamento. Ele mesmo controlava a contagem das lâminas. Nada lhe passava despercebido, nem os botões que se soltavam dos farrapos. Seu filho pequeno aceitava das mulheres que lhe enfiassem uns botões no bolso, em troca de não denunciá-las quando faziam o mesmo. Um dia, ele havia juntado tantos que lhe ocorreu trocá-los por balas na mercearia. Disso resultou, porém, que de noite Diederich ajoelhou-se à cama enquanto chupava o último açúcar de malte e rogou, tremendo de medo, ao terrível e amado Deus que deixasse o delito encoberto. Mas Ele o trouxe às claras. O pai, que sempre fizera uso metódico da vara – na face castigada de sargento, o dever e a firmeza da honra – dessa vez tinha a mão trêmula, e num dos tufos de sua barba prateada de imperador, correu-lhe uma lágrima, saltitando sobre as rugas. “Meu filho roubou”, ele disse sem fôlego e de voz apática, e encarou o filho como a um intruso suspeito. “Você engana e rouba. Só falta assassinar alguém.”

A Sra. Hessling quis forçar Diederich a atirar-se diante do pai e pedir-lhe perdão, pois o pai havia chorado por causa dele! Mas o instinto de Diederich dizia-lhe que isso apenas deixaria o pai ainda mais nervoso. Hessling de modo algum concordava com o jeito sentimental de sua mulher. Ela corrompera o filho para sempre. A propósito, ele a pegara em flagrante em uma mentira, assim como havia pegado Diedel. Não era de se admirar que ela lia romances! No sábado à noite, o trabalho da semana que fora dado a ela ainda não havia sido feito. Em vez de mexer-se, mexericava com a criada… E Hessling sequer sabia que também sua mulher beliscava comida como o filho. À mesa, ela não arriscava saciar-se e, mais tarde, deslizava até o armário. Tivesse ela se aventurado ao trabalho nas oficinas, também teria roubado botões.

Ela rezava com o filho “com o coração”, não por fórmulas prescritas, e com isso ganhava um vermelhão nas faces. Também batia nele, mas sem pensar e desfigurada por um ímpeto de vingança. Com frequência fazia-o sem ter razão. Então, Diederich ameaçava denunciá-la ao pai; fingia ir até o escritório, e alegrava-se em algum lugar atrás do muro por tê-la deixado com medo. Tirava proveito dos momentos de carinho, mas de modo algum sentia qualquer estima por sua mãe. Sua semelhança com ela não o permitia. Afinal não tinha estima nem por si mesmo; ao contrário, levava a vida com um remorso imenso, essa vida que não passaria pelo crivo divino.

Mesmo assim, ambos tinham seus momentos sublimes de extravasamento da alma. Juntos conseguiam arrancar das festas as últimas gotas de animação por meio do canto, piano e a narração de contos de fadas. Quando Diederich começou a duvidar do Papai Noel, deixou-se induzir pela mãe e acreditou nele mais um pouco, sentiu-se aliviado, bem e fiel. Também acreditava obstinadamente em um fantasma lá para cima do burgo, e o pai, que não queria saber de nada disso, parecia-lhe por demais orgulhoso, quase passível de ser castigado. A mãe alimentava-o de contos de fada. Partilhava com ele seu temor diante das ruas novas e agitadas e do bonde de tração animal que passava por elas e conduzia o menino pela muralha até o burgo. Lá desfrutavam aquele pavor agradável.

Chegando à esquina da Meisestrasse1 era preciso passar por um policial, que podia conduzir quem quisesse até a prisão! O coração de Diederich disparava; tivesse ele feito mais uma lâmina de papel! Só que assim o policial iria perceber sua consciência pesada e capturá-lo. Era tanto mais necessário demonstrar sentir-se limpo e sem culpa – e, com a voz trêmula, Diederich perguntava as horas ao guarda.

Depois de todas essas forças opressoras às quais era subjugado; depois de sapos encantados, do pai, do Deus amado, do fantasma do burgo e da polícia; depois do limpador de chaminés que podia esfregar alguém por dentro da chaminé toda até torná-lo um homem negro; do médico, que podia passar iodo na garganta de alguém e ainda sacudi-lo se gritasse – depois de todas essas forças opressoras, Diederich viu-se ainda sob outra mais aterrorizadora, que devorava o homem inteiro de uma vez: a escola. Entrou nela esperneando, e sequer as respostas que sabia ele conseguiu dar, pois tinha que espernear, e fim. Aos poucos aprendeu a usar o impulso de chorar quando não tinha estudado – pois todo seu medo não o fazia mais aplicado nem menos sonhador –, e assim evitou algumas consequências ruins, até que os professores entenderam seu sistema. Ao primeiro que atinou para isso dedicou toda sua atenção; acalmou-se de repente e o contemplou por sobre os braços retorcidos e mantidos sobre o rosto, cheio de uma devoção acanhada. Mantinha-se sempre resignado e submisso aos professores severos. Aos benevolentes pregava pequenas peças, dificilmente comprováveis, das quais ele não ficava se vangloriando. Sua maior satisfação era falar de um cataclismo nos boletins, do grande julgamento. Relatava à mesa: “Hoje o Sr. Behneke deu sova em mais três.” E se lhe perguntavam quem eram os tais: “Um deles fui eu.”

Afinal, Diederich era de tal temperamento que o alegrava o pertencimento a um tolo impessoal, a um organismo inexorável, atroz e mecanicista que era o curso científico no colégio; dava-lhe orgulho o poder, o poder cruel do qual ele mesmo partilhava, mesmo que tropegamente. No aniversário do catedrático, púlpito e lousa foram enfeitados com guirlandas. Até o báculo Diederich decorou com uma fita.

No decorrer dos anos, afetaram-lhe com sacro e doce calafrio duas catástrofes que se lançaram sobre os detentores do poder. Um assistente foi humilhado e exonerado pelo diretor na frente da classe. Um professor regente perdeu a sanidade. Forças opressoras ainda maiores, como o diretor e o manicômio, nesse caso eram terrivelmente implacáveis com os que até então tinham poder tão elevado. De baixo, discreta, mas invisivelmente, era permitido observar os cadáveres e tirar disso um aprendizado que atenuava a própria condição.

Esse poder que o mantinha em sua engrenagem, Diederich exercia-o sobre suas irmãs menores. Tinham que escrever conforme ele ditava e fingir que cometiam mais erros que os que lhes ocorriam espontaneamente, para que ele pudesse devastá-las com a tinta vermelha e distribuir castigos. E os castigos eram cruéis. As pequenas gritavam – e então era Diederich quem se mortificava para não ser denunciado.

Ele sequer precisava de um ser humano para imitar os detentores de poder. Bastava-lhe os animais, até mesmo as coisas. Ficava à borda da máquina holandesa vendo os tambores sovar os farrapos. “Aquele já era! Subordinai-vos mais uma vez! Tiras infames!”, murmurava Diederich, e seus olhos pálidos faiscavam. De repente se agachava, quase caía dentro da tina de cloro. A passada de um operário despertava-lhe de seu prazer vicioso.

Afinal, apenas se sentia de fato medonho e seguro de si quando ele mesmo ganhava uma sova. Resistia ao sofrimento como ninguém. No máximo pedia ao colega: “Nas costas não, é insalubre!”

Não que lhe faltassem senso de justiça e amor por tirar vantagem, mas Diederich levava em conta que a sova que recebia não trazia nem ganhos práticos ao executor, nem perdas reais a si mesmo. Mais sério que esses meros valores ideais era para ele o folheado de chantilly que o maître do Netziger Hof há tempos lhe havia prometido, e que ele ainda não tinha ganhado. Diederich ensaiou muitas vezes o caminho até o restaurante pela Meisestrasse e a feira, para admoestar aquele seu amigo de fraque. Mas um dia, quando ele não quis mais saber dessa obrigação, Diederich estacou sinceramente indignado e declarou: “Agora já chega! Se o senhor não cumprir a promessa imediatamente, terei de chamar seu superior!” Schorsch riu-se todo com isso e trouxe o folheado.

Isso sim foi um êxito palpável. Lamentavelmente Diederich pôde saboreá-lo somente com pressa e cuidado, pois temia que Wolfgang Buck, que o esperava lá fora, viesse até ele e cobrasse a porção que lhe fora prometida. Nesse ínterim, ele teve tempo de limpar a boca, e irrompeu porta afora xingando Schorsch e esbravejando que ele era um vigarista e não tinha folheado de chantilly algum. O senso de justiça de Diederich, que acabara de se expressar tão veementemente a seu favor, não dizia nada ante as reinvindicações do outro, as quais sem dúvida não se podiam simplesmente ignorar; a isso a personalidade do pai de Wolfgang dava grande atenção. O velho Sr. Buck não usava colarinhos engomados, mas um lenço de pescoço de seda branca e, sobre ela, uma barba mosqueteiro, branca e enorme. Quão lenta e majestosamente ele conduzia sua bengala ornada com ouro por sobre o pavimento! Trazia sobre a cabeça uma cartola e sob sua sobrecasaca vislumbravam-se com frequência as abas do fraque, e isso em plena luz do dia! Isso porque ele ia a assembleias, era encarregado da cidade toda. Sobre tudo que era público, a piscina, a prisão, tudo mesmo, Diederich pensava: “Isso pertence ao Sr. Buck.” Ele devia ser extraordinariamente rico e poderoso. Todos, até o Sr. Hessling, tiravam o chapéu diante dele e assim ficavam por muito tempo. Tirar algo de seu filho à força teria sido um ato de perigo imensurável. Para não ser totalmente esmigalhado pelos poderes supremos que ele tanto reverenciava, Diederich devia proceder com calma e astúcia.

 


[1Strasse significa, em alemão, rua. (N. da T.)

 

 

Luiz Heinrich Mann (1871-1950) nasceu em Lübeck, Alemanha. Ganhador do prêmio Nobel de Literatura em 1929, irmão de Thomas Mann, autor de A montanha mágica e Dr. Fausto, e tio de Klaus Mann, autor de Mefisto. Heinrich Mann foi um escritor de grande observação social e de manifesto posicionamento político. Era renomado e bastante lido durante a República de Weimar, governo instaurado após a derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial. Com a ascensão de Hitler ao poder, em janeiro de 1933, Heinrich Mann partiu da Alemanha para o exílio. Seus livros foram queimados nas fogueiras pelos nazistas e sua primeira mulher foi enviada a um campo de concentração em 1940. Além de O súdito, escreveu O anjo azul.

 

O súdito, de Heinrich Mann

Publicado pela editora Mundaréu, no ano passado, O súdito é uma sátira à sociedade alemã das décadas anteriores à Primeira Guerra Mundial e, particularmente, de um tipo humano comum naquele período. A sutileza e a percepção histórica – além do humor – presentes na narrativa da vida de Diederich Hessling na Alemanha guilhermina extrapolam as expectativas usuais.

 

Texto publicado na edição 1 da revista Eels.

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