Contos

Três tesouros

Uma tarde, eram quatro horas, o sr. X… voltava à sua casa para jantar. O apetite que levava não o fez reparar em um cabriolé que estava parado à sua porta. Entrou, subiu a escada, penetra na sala e… dá com os olhos em um homem que passeava a largos passos como agitado por uma […]

– 20/01/2014

Uma tarde, eram quatro horas, o sr. X… voltava à sua casa para jantar. O apetite que levava não o fez reparar em um cabriolé que estava parado à sua porta. Entrou, subiu a escada, penetra na sala e… dá com os olhos em um homem que passeava a largos passos como agitado por uma interna aflição.

Cumprimentou-o polidamente; mas o homem lançou-se sobre ele e com uma voz alterada, diz-lhe:

– Senhor, eu sou F…, marido da senhora Dona E…

– Estimo muito conhecê-lo, responde o sr. X…; mas não tenho a honra de conhecer a senhora Dona E…

– Não a conhece! Não a conhece! … quer juntar a zombaria à infâmia?

– Senhor!…

E o sr. X… deu um passo para ele.

– Alto lá!

O sr. F… , tirando do bolso uma pistola, continuou:

– Ou o senhor há de deixar esta corte, ou vai morrer como um cão!

– Mas, senhor, disse o sr. X…, a quem a eloquência do sr. F… tinha produzido um certo efeito, que motivo tem o senhor?…

– Que motivo! é boa! Pois não é um motivo andar o senhor fazendo a corte à minha mulher?

– A corte à sua mulher! Não compreendo!

– Não compreende! Oh! Não me faça perder a estribeira.

– Creio que se engana…

– Enganar-me! é boa! … Mas eu o vi… sair duas vezes de minha casa…

– Sua casa!

– No Andaraí… por uma porta secreta… Vamos! Ou…

– Mas, senhor, há de ser outro, que se pareça comigo…

– Não; não; é o senhor mesmo… como escapar-me este ar de tolo que ressalta de toda a sua cara? Vamos, ou deixar a cidade, ou morrer… Escolha!

Era um dilema. O sr. X… compreendeu que estava metido entre um cavalo e uma pistola. Pois toda a sua paixão era ir a Minas, escolheu o cavalo. Surgiu, porém, uma objeção.

– Mas, senhor, disse ele, os meus recursos…

– Os seus recursos! Ah! tudo previ… descanse… eu sou um marido previdente.

E tirando da algibeira da casaca uma linda carteira de couro da Rússia, diz-lhe:

– Aqui tem dois contos de réis para os gastos da viagem; vamos, parta! Parta imediatamente. Para onde vai?

– Para Minas.

– Oh! A pátria do Tiradentes! Deus o leve a salvamento… Perdoo-lhe, mas não volte a esta corte… Boa viagem!

Dizendo isto, o sr. F… desceu precipitadamente a escada, e entrou no cabriolé, que desapareceu em uma nuvem de poeira.

O sr. X… ficou por alguns instantes pensativo. Não podia acreditar nos seus olhos e ouvidos; pensava sonhar. Um engano trazia-lhe dois contos de réis, e a realização de um dos seus mais caros sonhos. Jantou tranquilamente, e daí a uma hora partia para a terra de Gonzaga, deixando em sua casa apenas um moleque encarregado de instruir, pelo espaço de oito dias, aos seus amigos sobre o seu destino.

No dia seguinte, pelas onze horas da manhã, voltava o sr. F… para a sua chácara de Andaraí, pois tinha passado a noite fora.

Entrou, penetrou na sala, e indo deixar o chapéu sobre uma mesa, viu ali o seguinte bilhete: “Meu caro esposo! Parto no paquete em companhia do teu amigo P… Vou para a Europa. Desculpa a má companhia, pois melhor não podia ser. – Tua E…”.

Desesperado, fora de si, o sr. F… lança-se a um jornal que perto estava: o paquete tinha partido às oito horas.

– Era P… que eu acreditava meu amigo… Ah! maldição! Ao menos não percamos os dois contos! Tornou a meter-se no cabriolé e dirigiu-se à casa do sr. X…, subiu; apareceu o moleque.

– Teu senhor?

– Partiu para Minas.

O sr. F… desmaiou.

Quando deu acordo de si estava louco… louco varrido!

Hoje, quando alguém o visita, diz ele com um tom lastimoso:

– Perdi três tesouros a um tempo: uma mulher sem igual, um amigo a toda prova, e uma linda carteira cheia de encantadoras notas… que bem podiam aquecer-me as algibeiras!…

Neste último ponto, o doido tem razão, e parece ser um doido com juízo.

 

 

Joaquim Maria Machado de Assis nasceu em 21 de junho de 1839, no Rio de Janeiro. De origem humilde, estreou com o poema “Ela”, em 1855, no jornal A Marmota. Foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras e o primeiro presidente da entidade. Consagrado pela crítica e pelo público, Machado de Assis escreveu contos, crônicas, poemas, peças teatrais, ensaios e romances. Entre as suas principais obras estão Memórias póstumas de Brás Cubas, Papéis avulsos, Quincas Borba, Várias histórias e Dom Casmurro. No dia 29 de setembro, o escritor faleceu no Rio de Janeiro.

Deixe um comentário

Nome *




* Campos obrigatórios

Newsletter

Cadastre seu e-mail e receba atualizações do site

Powered by FeedBurner

 

Livraria Cultura - Clique aqui e conheça nossos produtos!

 

 

Copyright © 2009 Literatsi. Todos os direitos reservados.
Powered by WordPress