Entrou a correr em casa, e arremessou a porta atrás de si, que fez um enorme estrondo ao fechar. Ficou ali, encostado, tremendo, sentindo as batidas do coração na boca, na garganta, nas mãos, nos pés, nas costas. Parecia-lhe que o seu coração havia implodido no peito, lançando pedaços palpitantes para todos os cantos do seu corpo. Era assim que se sentia, espalhado… mas a pulsar ainda. Estava certo de que estava fragmentado e desconhecia a forma de se colar. Ali encostado e ainda ofegante, concluía lentamente que aquele dia significava o fim de qualquer coisa. De quê, não o sabia. Mas a sensação de que algo o perseguia tornara-se hoje uma certeza indubitável. Há meses que olhava para trás desconfiado, que pressentia uma presença no seu encalço, de algo a pairar sobre si. Mas a certeza de que isso era uma realidade e não uma mera impressão ou excesso onírico, só hoje a tinha obtido.
Ficou ali imobilizado, pensando o que fazer. Quando as suas batidas cardíacas abrandaram para um ritmo razoável, decidiu que deveria se mexer. Trancar a porta pareceu-lhe um primeiro passo razoável. Retirou do bolso as chaves de casa, impressionado com a forma como os seus braços ainda tremiam, e trancou-se. O primeiro passo estava dado. A custo conseguiu arrastar-se para longe da entrada. Por alguma razão tinha acalmado um pouco naquele local, com as costas na madeira fria, mas assim que se afastou, o desconforto físico regressou, e sentiu os músculos retesarem-se e as batidas cardíacas galoparem. Fantasiou sobre a possibilidade do seu perseguidor poder estar dentro de casa. Este pensamento fê-lo paralisar de medo.
Não entendia. Ele não era nem nunca fora alguém. Pelo menos não alguém importante o suficiente para ser perseguido. Mas a sensação estava lá, e hoje tivera a certeza. Hoje tinha visto algo. Caminhava atrás de si. Sempre que olhara para trás, vira sempre o mesmo homem, na rua. Tinha a certeza que já o tinha visto antes. Mas agora que pensava melhor, a sua certeza começava a esbater-se e a ser polvilhada por várias incongruências, lançando novamente a dúvida. Sabia que o medo o fazia ver e sentir mais, mas pensar menos.
Os seus pensamentos foram cortados por uma corrente de energia que lhe percorreu todo o corpo, quando de repente viu algo pelo canto do olho. Deu um enorme salto, assumindo a posição de combate, preparado para enfrentar finalmente o seu perseguidor e resolver o seu destino. Mas os seus olhos não lobrigaram nada. Apenas a sua sombra exposta na parede, erigida a partir dos seus pés. Pensou como seria útil que a sua sombra tivesse sido cosida como a de Peter Pan, e a pudesse descoser ponto a ponto, dobrá-la e guardá-la no armário junto com a roupa de cama.
Apesar de ter confirmado que era apenas a sua sombra, a sensação de dividir a sua casa com alguém não o abandonara. Não tinha nenhuma arma para se defender, pelo que se dirigiu à cozinha para procurar a maior faca que possuísse. Contudo, empunhar o facalhão da carne, não o fez sentir-se mais seguro, como pensara. Sentiu, no entanto, um pouco mais de coragem e decidiu percorrer a casa. Pé ante pé, tentando imitar um espectro, verificou todas as divisões. Apeteceu-lhe gritar “Clear!” como os atores, após verificar cada divisão, mas a sua voz estava demasiado sumida para tal.
Terminou na sala de estar. Olhou a garrafa de whisky no bar, pensou ter encontrado finalmente o conforto que precisava. No entanto, ao fim de três golos, estava a vomitar na casa de banho. O estômago ressentia-se da privação de alimentos a que tinha sido votado, privação essa que não era só de hoje. Lavou a cara no lavatório e olhou-se demoradamente no espelho. Lívido, de olhos injetados e de faca na mão.
– O que se passa contigo? Será isto ainda por culpa dela?, falava agora sobre a sua mulher. Um dia tinha voltado para casa e não a encontrara. Muitos objetos estavam também em falta. As coisas dele, as coisas dela, e as coisas deles. Apesar disso, acreditava que tinha sido um rapto e não um abandono. “Provavelmente foi raptada por quem me persegue”, pensava agora. Mas olhando-se no espelho não conseguia repetir essa hipótese fantástica.
A sensação era real e não o abandonava. A sensação de perseguição e um medo sempre presente. Olhou a faca e o seu pescoço de neve no espelho. Suicídio. Já o havia pensado antes.
– Está na hora de procurares ajuda… – disse alto, com voz pouco firme. O seu declínio era bem manifesto. Envergonhava-se de si próprio e desta mania da perseguição. – Estou paranoico… Não estou bem… – repetia.
Não queria acreditar que era isto que o futuro lhe reservara. Pousou a faca no lavatório, e lavou lentamente a cara e o pescoço. Pegou na toalha onde afundou a cabeça, como se pudesse limpar também os maus pensamentos.
De repente, sentiu algo como nunca havia sentido. Uma dor excruciante e insuportável, sacudia-o, mas o grito ficou preso na garganta. A toalha escorregou-lhe das mãos. Olhou o seu abdómen de onde provinha a dor, levando instintivamente as mãos ao mesmo. A ponta de uma faca surgia de dentro de si. A mesma que havia pousado no lavatório, estava agora dentro de si, estraçalhando-o. O sangue escorria, a dor apertava, e as pernas entorpeciam-se. Sentia-se a desfalecer, quando sentiu uma mão no ombro.
– Vai correr tudo bem. Em breve sentir-te-ás melhor… – disse uma voz, arranhando o seu ouvido.
Olhou o espelho, e viu-o. Era ele. O homem que vira na rua!
– Afinal não estou maluco… não estou… digam-lhe… que não fiquei… que… – disse, segurando-se ainda de pé com as mãos pousadas no lavatório, antes de cair e fechar os olhos pela última vez.
– Não te preocupes… Vais vê-la daqui a nada… – disse arrastadamente o esfaqueador, ostentando um sorriso horrendo mas sincero no espelho que ainda há momentos refletira duas pessoas.
Ana Luiz, tem 40 anos e é uma escritora amadora, que começou a partilhar as suas histórias no ano de 2013. Publicou um livro solo intitulado O quebra-montras e tem participado em diversas colectâneas e antologias. Poderão conhecer melhor a autora e as suas publicações no site http://cristinaluiz.wix.com/analuiz.
Texto publicado na edição 1 da revista Eels.
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