A ORIGEM DO MUNDO
Jorge Edwards
Tradução de José Rubens Siqueira
160 páginas
Cosac Naify, 2014
R$ 29,90
Silvia e Patricio Illanes são um casal de médicos exilados em Paris após o golpe de Pinochet, em 1973. Na capital francesa, o casal convive com o amigo Felipe Diaz: boêmio, sedutor e crítico feroz dos velhos dogmas da esquerda. Felipe é o oposto de Patricio, que é sério, contido, defensor da vida saudável e marido dedicado. Com a morte de Felipe, a leve desconfiança de Patricio sobre a fidelidade da mulher se torna uma quase certeza de adultério. Tomado pelo ciúme, o médico inicia uma tola investigação cuja principal pista é a reprodução do famoso e polêmico quadro de Gustave Courbet, A origem do mundo. Neste quadro, em plano fechado, aparece uma mulher nua, deitada e de pernas abertas mostrando a genitália.
Vencedor do Prêmio Cervantes de 1999, Jorge Edwards aborda de forma trágica e ao mesmo tempo bem humorada a decadência e o renascimento do amor e do desejo, o fracasso dos sonhos políticos e a ficção como elemento de resistência indispensável à vida.
Trecho
Tudo começou na segunda ou terça-feira da semana passada, na frente do quadro. Começou como uma ocorrência repentina, como uma pergunta. Não passou de uma brincadeira, mas depois da noite da última segunda-feira, depois que encontraram o cadáver, essa brincadeira, da qual não tinha me esquecido, veio a adquirir matizes mais inquietantes, menos leves. Matizes mais escuros, digamos assim.
− Sabe de uma coisa? – perguntei a Silvia em voz baixa, depois de ter olhado o quadro no salão dos Courbet por alguns minutos.
− O quê?
− Parece muito com você.
− Você está louco! – Silvia exclamou, ruborizada como uma colegial, mais irritada do que eu poderia ter previsto, e olhou para os lados, porque sempre, e sobretudo nessa época do ano, em pleno verão, havia turistas espanhóis.
− Mas é a mesma barriguinha – expliquei, envergonhado, rindo, apesar de tudo, e pensando que os espanhóis não entendiam o chilenismo – e as mesmas coxas grossas, bem torneadas e até os mesmos pelos, a mesma…
− Velho sem-vergonha! – Silvia exclamou, ainda irritada. – Fique quieto! – E empreendeu a retirada pelo centro da sala, rumo à porta de saída, por entre os animais de bronze que tinham povoado as salas de jantar de nossas avós, que durante décadas haviam saído, entre empurrões e sussurros, debaixo do martelo dos leiloeiros: cachorros pensativos, javalis em posição de ataque, leões em estado de sonolência.
− Felipe Díaz – insisti, como se não me restasse outra alternativa senão insistir – tem a mania de fotografar suas amantes nuas e em poses obscenas.
− De onde você tirou isso? – ela perguntou, mais tranquila, pelo menos na expressão dos olhos, mas sem que a exasperação inicial tivesse desaparecido.
− O Alfredo me contou, ele é um verdadeiro perito nas histórias do Felipe.
− Sinto falta dele – Silvia murmurou, pensativa. – Há quatro domingos, um mês inteiro, que Felipe não almoça conosco nem dá sinal de vida.
− A gente devia ligar para ele – eu disse.
− Telefonei duas vezes – disse Silvia. – Deixei um recado na secretária eletrônica e ele não se dignou a ligar de volta. Será que aconteceu alguma coisa?
Isso me incomodou, na verdade, embora não houvesse por que me incomodar, só que eu já suspeitava há algum tempo que Silvia podia ter ligado para ele e não ter me dito nada. Me deixou pensativo. Relacionei o assunto, de um jeito difícil de explicar, de explicar inclusive a mim mesmo, com o quadro. Nessa noite, pedi que ela se colocasse na pose da modelo do quadro, a pose exata, quer dizer, que se deitasse de costas, nua, com as pernas roliças separadas, o rosto coberto pelos lençóis. Inclusive tirei uma reprodução do bolso do pijama, porque tinha me dado ao trabalho de colocá-la no pijama, o que, em termos penais, teria revelado deliberação, premeditação, e examinei-a atentamente. A postura tinha de ser o mais fiel possível!
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