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Memórias de ex-torturador servem de alerta para o perigo da indiferença diante da opressão e barbárie

No romance História policial, de Imre Kertész, as memórias de um ex-torturador mostram a história de pai e filho que foram vítimas de uma ditadura sul-americana

– 12/04/2014

História policialHISTÓRIA POLICIAL
Imre Kertész
120 páginas
Tordesilhas (Alaúde), 2014
R$ 27,50

 

Laureado com o Prêmio Nobel de Literatura em 2002, o escritor Imre Kertész sabe muito bem o que é viver sob o horror imposto por um regime totalitário. Ainda adolescente, por ser de origem judia, Kertész foi preso pelos nazistas e mandado para o campo de concentração de Auschwitz, e mais tarde para o de Buchenwald. Libertado pelos soviéticos, o jovem se tornou comunista. Decepcionado com a situação Hungria, virou dissidente do regime. A experiência dolorosa de viver sob a opressão e arbitrariedade é explorada por Imre Kertész em sua obra.

O livro História policial foi publicado pela primeira vez em 1977, época em que todas as editoras húngaras eram estatais. Para escapar da censura, o escritor mudou o local da história para um país fictício da América do Sul. O desajustado Antonio Martens era um policial a serviço de um regime totalitário. Com a queda deste, Martens vai para a prisão por crimes contra os direitos humanos. Ciente de que será executado, o policial começa a escrever suas memórias na cadeia. Do relato surgem os comerciantes Federico e Enrique Salinas, pai e filho, presos e torturados pela equipe de Martens. Fragmentos do diário do jovem Enrique complementam a narrativa do ex-tortutador. Apesar da vida abastada e protegida, Enrique não aceita e luta contra a ditadura que se instalou no país, para o desespero do pai.

 

Trecho

Sou Martens. Sim, o mesmo Martens que atualmente está diante dos juízes do novo regime. Diante dos juízes do povo, como gostam de ser chamados. Têm aparecido muitos artigos sobre mim: os diários sensacionalistas se encarregaram de tornar meu nome conhecido em toda a América Latina, talvez até mesmo do outro lado do oceano, na distante Europa.

Devo andar rápido; meu tempo, provavelmente, é curto. Trata-se do Dossiê Salinas: de Federico e Enrique Salinas, pai e filho, donos da rede de lojas de departamentos que cobre todo o nosso país, e cuja morte tanto surpreendeu as pessoas na época. Mesmo que então elas já não se surpreendessem facilmente. Mas ninguém pensaria que Salinas pudesse ser um traidor, que emprestasse seu nome à Insurreição. Mais tarde, o Coronel se arrependeu de termos publicado um comunicado sobre sua execução: sem dúvida, isso causou uma grande comoção – grande demais, e sem necessidade alguma. Mas, se não tivéssemos publicado esse comunicado, cairia sobre a nossa cabeça a acusação de falta de transparência e infração das leis. De um jeito ou de outro, esse processo não havia como não errar. De resto, o Coronel já havia previsto isso com bastante antecedência. Aqui entre nós, eu também. Mas que outro tipo de reação poderiam ter provocado ainda sobre os acontecimentos as convicções de um investigador?

Na época eu ainda era novato no Departamento. Vinha da polícia. Não da política – eles já tinham sido incorporados havia mais tempo –, mas sim do combate ao crime. “Martens”, me diz um dia meu chefe, “você não gostaria de mudar de setor?” “Ir para onde?”, pergunto, pois, afinal de contas, sou policial, e não leitor de pensamentos. Ele então aponta com a cabeça: “Para o Departamento”. Eu não disse nem sim nem não. A vida no combate ao crime era passável. Mas os assassinos, os ladrões e as suas putas já começavam a me cansar. Novos ventos sopravam então. Soube que alguns haviam sido promovidos. Diziam: quem se esforça tem futuro. “O Departamento precisa de gente”, continuou meu chefe, “e fiquei imaginando quem poderia indicar. Martens, você é um sujeito talentoso. E lá pode se destacar mais rapidamente”, ele acrescentou.

Era mais ou menos o que eu também pensava.

Fiz o curso, passei por uma lavagem cerebral. Não foi o suficiente, longe disso. Ainda sobrou muita coisa, muito mais do que eu precisaria – mas eles estavam danados de apressados. Tudo era muito urgente naqueles tempos. Era preciso estabelecer a ordem, apressar a Consolidação, salvar a Pátria, acabar com a subversão – e, ao que parecia, tudo isso recaía sobre os nossos ombros. “Isso você vai aprender na prática”, diziam, quando algo me dava dor de cabeça. O diabo me carregue se aprendi alguma coisa. Mas o trabalho me interessava. E o salário, mais ainda.

Fui parar no grupo de Díaz (o mesmo Díaz que agora procuram sem sucesso). Éramos três: Díaz, o chefe (posso garantir a todos que ele jamais será encontrado), Rodríguez (que já foi condenado à morte, a uma morte só, quando merecia mil mortes, o miserável) e eu, o novato. E, é claro, os auxiliares, o dinheiro, amplos poderes e uma tecnologia ilimitada, que um simples tira não se arriscaria a aprender nem nos livros, para não pensar que era algo real.

Não demorou muito e, de repente, sobreveio o caso Salinas. Cedo demais, terrivelmente cedo. Justamente na época das minhas maiores dores de cabeça. Mas sobreveio, e não havia o que fazer: não poderei mais me livrar dele. Vou ter de contar a história para servir de lição aos outros, antes de ir embora… antes de me mandarem embora. Mas vamos deixar isso para lá; é o que menos me preocupa agora. Sempre estive pronto para enfrentá-la. Nossa profissão é arriscada; uma vez iniciada, o caminho de volta só nos conduz para a frente – como Díaz costumava dizer (sabem: aquele que é procurado em vão).

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