O que chama a atenção no livro de estreia de Moema Vilela – Ter saudade era bom (160 páginas, Dublinense, R$ 25,00) – é a grande variedade de narradores, temáticas e subgêneros literários (de um texto epistolar à ficção científica). Todos os contos de Moema Vilela trazem personagens que vivem um presente devastado por razões desconhecidas mas sentem saudade de um passado e de um futuro distantes.
Forrest Gump envolvido com a ditadura militar brasileira e com o acidente na mina no Chile em 2010; um pai arrependido que retoma o contato com a filha abandonada sabendo que esta seria uma possível herdeira de um apartamento; ou ainda, um insone, desesperado com o medo que lhe tira o sono, acaba encontrando na rua um pesadelo pior. Sobre os personagens de Moema Vilela, o escritor Reginaldo Pujol escreve na orelha do livro: “A vida fracassou ‘num cálculo onde o que estava errado não era a resposta, mas a própria proposta da equação’ e eles parecem perceber ou sentir como ter saudade era bom. Como se ter saudade fosse lembrar que um dia houve algo que encaixou. Fez sentido. Ter saudade para, num espelho invertido, encontrar um fio de esperança no futuro. Ótimo exemplo é o conto fantástico (em vários sentidos) ‘A reconstrução’ que, do no meio do livro, ressoa a nostalgia da saudade para o passado e o futuro. Mas a Moema autora não parece ter saudade. Cada conto é página virada, forma explorada. Difícil mapear sua voz ou estilo no livro. Narra no papel de homem e mulher, em diferentes tempos, registros variados. Mira sempre a próxima forma. Olha para trás apenas para lembrar o que não repetir.”
O lançamento de Ter saudade era bom acontece no dia 10 de outubro (sexta-feira), a partir das 19h, na Palavraria (Rua Vasco da Gama, 165 – Porto Alegre, RS). Vale lembrar que o livro foi selecionado e conta com o incentivo do Fundo Municipal de Incentivo à Cultura (FMIC) da Fundação Municipal de Cultura (Fundac) da Prefeitura Municipal de Campo Grande (MS).
Confira a seguir trechos de três contos de Ter saudade era bom, de Moema Vilela.
Quando você volta?
A única coisa boa dos estados de exceção eram as festas. Desta vez, o candidato subira três pontos nas intenções de voto em uma semana. Para comemorar, a diretora de televisão tinha arranjado de beber, comer e dançar na casa de uma dessas amigas locais com um jardim imenso. Na entrada, adolescentes uniformizadas apanhavam bolsas e jaquetas, substituindo-as por coquetéis com guarda-chuvas. A casa cheirava à grama cortada e Chanel n. 5. Nesta aura, até o assistente de designer gráfico parecia brilhar, em vez de trazer a cara de quem tinha passado o dia fazendo dégradé em santinhos, colando números e branqueando sorrisos amarelos.
Para Joana, o ar estava mais carregado de eletricidade porque Silas aparecia e desaparecia dos ambientes. Ela achava que ele tinha ido embora e a conversa ficava menos interessante. Depois o redescobria lá fora pegando mais uma cerveja no freezer. Joana nem precisava falar com ele, só gostaria de poder ficar durante toda a noite sob o efeito daquela presença como se estivesse bêbada de Silas. Ela gostava de ter dúvidas sobre se ele estaria na festa por causa da bebida de graça, mas quando eles finalmente se encontraram sozinhos e ela o cumprimentou, “Olha só, você numa festa”, Silas respondeu que era o que ele podia tentar depois te tê-la convidado para almoçar tantas vezes sem sucesso.
Ele não desviou o olhar e Joana perguntou se ele queria sair. Caminharam sem se olhar, até avistarem a porta e saírem correndo até lá fora, rindo, na rua. De longe, ouviam-se os gritos de Vito, que tinha tomado vinho, uísque, champanhe e conhaque. Tentava jogar o redator na piscina, mas estavam os dois velhos e intoxicados, lutando para conseguir manter a posição vertical.
Silas e Joana foram para um motel num lugar bem alto, com uma boa vista da cidade. Silas apontou a direção de uma torre de alvenaria, era a tevê em que ele trabalhava antes. Falou dos córregos onde os primeiros colonizadores chegaram. Mostrou uma casa miúda à Noroeste, entre dois prédios iluminados, é onde morava o melhor amigo que morreu num acidente. Silas ainda sonha com ele às vezes, mas sempre na versão infantil, não na idade que ele tinha quando bateu a moto. Dali, ficaram vendo o pátio escuro da casa, onde só se podia imaginar o cachorro, o varal, as tralhas de uma família que Silas nunca quis revisitar.
Joana e Silas não saíram do hotel também no dia seguinte, uma das raras folgas longas de trabalho. Cantaram músicas preferidas um para o outro e aproveitaram a piscina morna até ficarem com dedos de ameixa.
Na segunda-feira, Silas viajou para Sidrolândia para cobrir um comício e eles só se viram dois dias depois, no almoço. Joana levou o prato para a mesa dele, mas logo um produtor colocou sobre a toalha um terceiro volume, transbordando de strogonoff e batalha-palha.
– Sexta-feira, hoje você vai ter que socializar. Está chegando aí o nosso futuro governador.
Joana desencostou os joelhos de Silas e suspirou, involuntariamente teatral. Pelo alvoroço no corredor, dava para ver que o candidato estava mesmo chegando.
– Quer tomar um café mais tarde? Fazer alguma coisa? – perguntou Silas.
– Estou atolada de trampo, mas valeu.
Ele não entendia nada, e nem Joana. Ela só sabia que não havia nada a fazer e nem lugar pra ir.
Água
Marina podia, e muitas não podem, entender um homem que amasse e depois deixasse de amar. Daqui uns anos, decerto, poderá também entender um homem que vai embora sem se despedir, outro homem que empurra mulheres de navios, a gratuita grosseria. Uma mulher que chama de lua de mel apenas o reencontro mais esperado do seu ano, ignorando a diferença entre compromisso e compromisso, falando de uma união definitiva para sua família e suas amigas, enquanto o amado lhe encontra sempre só, acha os presentes e as datas comemorativas uma invenção do capitalismo, e não vê diferença entre a obsessão apaixonada e os velhinhos que sentam juntos na praça suja. Uma mulher que inventa um homem e tudo que ele sente e ainda não entende por que ele não está interessado em tão generosa companhia. Até essa mulher ela aceitaria, quem sabe. Mas o que prende os pés de Marina naquela areia dura é o que ela não pode entender. Se ela entendesse tudo, o que restaria? Que amor, que vínculos seriam esses, privados da obscuridade que os ilumina?
Bijuzinha
Pegavam no pé da mãe, falando que ela era boa demais, mas a mãe era sabida, virava a conversa de bruços:
— Só dá quem tem, Sinhá! Então, eu dou e dou pra não ter falta — ela gritava esse cala-a-boca, comigo pendurado num peito e a Tonita no outro. Filho de Bijuzinha nunca pediu e não teve, que a mãe era mesmo boa demais. E lá ia eu, grande que nem precisava de colo, mamando de pé, montado na perna e grudado no peito que minha irmã não podia chupar com uma boca só.
Tinha sempre sido assim. Os irmãos da mãe eram grandes e de condição, mas eram homens. Daí, ela fazia e levava na roça o quebra-torto, remendava roupas, tirava o leite. Cresceu, mas continuou igual. A ponto de o meu pai sentar, na cozinha, com o cachorrinho Fuzuê lhe rodeando as chinelas e avisar:
— Café, açúcar, copo e uma colher.
Ela atrasava o tacho com o quente da goiaba e só voltava no fogo depois de atender ao pedido dele.
Só que, além de calejada na gente, a mãe era entendida na cura e no aliviamento. Dona Sinhá tem dor nas juntas, Linalda no espinhaço. Seu Gumercindo, no filho, que não obedecia pai nem mãe e dava de sumir nos brejos de Miranda. Como tudo a mãe acalmava, quem não tinha remédio era ela: vivia pros outros.
O caso é que eu achava que o desmedido da caridade dela estava mal. Ela também não ficava cansada? No meio da noite, levantava pra atender indivíduo ébrio, mal-agradecido e folgado. Por isso, quando Jinjim me pediu pra correr e avisar a mãe, nem fui.
Daí, não sei se hoje lhe conto este perdão porque queria me arrepender com Jinjim ou me desculpar com a mãe. Ou se é pra me escusar frente aos outros, porque prometi ter certeza e no fato eu não sabia nada. Jinjim expirou e não inspirou de novo, que é essa a exatidão da morte, e eu aprendi que minha justiça valia menos que a fartura da mãe.
Aconteceu assim…
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