Para homenagear de forma criativa e bem-humorada os escritores que lhe serviram de inspiração, Reginaldo Pujol Filho escreveu o livro Quero ser Reginaldo Pujol Filho. Usando emulações, pastiches e brincadeiras, o autor dialoga com Altair Martins, Amílcar Bettega Barbosa, Gonçalo M. Tavares, Italo Calvino, Luigi Pirandello, Luis Fernando Verissimo, Machado de Assis, Mia Couto, Miguel de Cervantes e Rubem Fonseca.
Reginaldo Pujol Filho também foi organizador da antologia Desacordo ortográfico, que não é um manifesto contra o Novo Acordo Ortográfico, mas uma exaltação à diversidade e riqueza da língua portuguesa. “Com acordo ou sem acordo, o negócio é fazer o que a gente quiser, respeitando uma só regra: a da boa literatura”, afirma Reginaldo no livro.
Natural de Porto Alegre, Reginaldo escreveu roteiros de curta-metragem e colaborou com diversos jornais e revistas. Também leciona o curso “Quem está falando? O narrador com personalidade” na escola portuguesa Escrita Criativa On Line. Na entrevista a seguir, o escritor fala sobre suas leituras e se concorda ou não com a ideia de que as pessoas preferem ler romances.
O que você está lendo atualmente?
Acabei de ler uma maratona de livros para a seleção de doutorado. No meio disso, estou lendo O Brasil é bom, do André Sant’Anna e Crônicas de Bustos Domecq, do Borges e do Bioy Casares. Mas em instantes já tenho que abraçar outra bibliografia para terminar minha dissertação de mestrado.
O que te chama mais a atenção em um livro: a história ou a forma como ela é contada?
Pergunta dura. Tendo a te dizer que é a forma. Por exemplo, me emocionei com o primeiro capítulo de Barreira, do Amílcar Bettega, pelo movimento do texto, pelo que o autor havia conseguido fazer. E não exagero quando falo em emoção, foi coisa de arrepiar mesmo. Mas sempre que entro nisso, ou quando estou escrevendo algo muito formal, lembro de Sérgio Faraco e tendo a pensar naquela coisa da simplicidade de se contar uma boa história. Mas quer saber? Não existe boa história sem boa forma: mesmo a simplicidade do Faraco, do contador de histórias, do Cem anos de solidão, é forma. É uma forma mais simples, que não grita, que não pede atenção, que não se problematiza. Mas é forma. Então, se por vezes, e isso acontece muito, a história de um livro me chama a atenção (pensemos em Dom Quixote ou em contos do Rubem Fonseca) é trabalho de forma também. Acho que são irmãos siameses, forma e história, chamam atenção mutuamente, porque estão grudados, inseparáveis. É claro que há os trabalhos metalinguísticos, digamos mais conceituais, onde parece que a forma se sobressai, em que o texto está discutindo a própria forma, como “Conto (não conto)”, do Sérgio Sant’Anna, que fogem a essa ideia de tensão, trama, narrativa. E gosto muito de trabalhos assim. Por isso que lá no começo, tendi a dizer forma. Mas não gosto de separar estas coisas. E acho importante também que o texto que estou lendo me faça pensar. De que modo ele me inquieta. Como ele me faz ir além. E isso pode ser obtido das mais diferentes maneiras.
Um personagem precisa de quais características para ser marcante?
É tão difícil generalizar. Mas me parece que é mais ou menos como uma pessoa, tem que ter algo de próprio, mesmo que seja seu tédio. Uma vez vi o Juremir Machado falar sobre “personagens com ideias”, que não são ou não precisam ser as ideias do autor, são ideias com as quais o leitor pode discordar, ou concordar. Acho legal pensar por aí. Mas desde o começo dessa resposta retorna na minha cabeça Vinícius de Moraes, “Qualquer coisa de triste, qualquer coisa que chora, qualquer coisa que sente saudade”. Eu acrescentaria qualquer coisa que faz rir, qualquer coisa que incomoda, qualquer coisa de esquisito. Um personagem tem que ter essa indefinível qualquer coisa que tem o Quixote, o Bartleby, o Decoroso do Carlos de Brito e Mello, o Oskar do Safran Foer e o Senhor Henry do Gonçalo M. Tavares, qualquer coisa sua, que se eu soubesse dizer já não seria esse mistério.
Do que um narrador precisa para seduzir os leitores? Na sua opinião, qual escritor brasileiro criou os melhores narradores?
Para seduzir os leitores, não sei. Para me seduzir, bom, vamos começar pelo fim da pergunta e isso talvez ajude a entender o que um narrador precisa para me seduzir. Não consigo dizer um só autor, um só narrador, portanto, segura: Machado de Assis, Guimarães Rosa, Campos de Carvalho, Rubem Fonseca (nos contos), Luis Fernando Verissimo (Ed Mort, O jardim do diabo), André Laurentino em seu único romance, Ricardo Lísias (no Livro dos mandarins), Sérgio Faraco, e vou achando que aqui se configura um enorme não sei. Penso no narrador, e acho que é isso que me agrada, como penso no personagem. Não basta estar lá. O narrador é tão decisivo quanto o personagem, a história. Pensa naquelas pessoas que não sabem contar piadas, elas estragam as melhores piadas. Ou serão os bons contadores que melhoram qualquer piada? Talvez aí esteja a magia do narrador, e acho que é possível que dê para se dizer que a característica do bom narrador é a justeza. Aquele que nos faz pensar que não poderia haver outra voz (ou outras vozes) narrando o livro, o conto. Basta ver a variedade de autores que me encantam com seus narradores, desde os fazedores de estripulias, até os discretíssimos. Quer dizer, não gosto de um narrador apenas porque ele tem tal característica. Gosto porque aquela característica do narrador encaixou lindamente no que ele está contando. E isso é coisa nem tão fácil de achar. Um narrador que faz a diferença.
Quando percebe que não está gostando de um livro, você o abandona ou continua lendo até o fim?
É muito raro abandonar um livro. Tenho um exercício de fé com os livros. Para abandonar um livro, só porque a vida me atropelou e obrigou a ler outras trocentas coisas. Mas em geral, levo até o fim, quase como um desses caminhos de Santiago de Compostela. Alguma coisa eu descubro na peregrinação, por mais árida que ela seja.
Já se sentiu na obrigação de gostar de um livro, mas acabou não gostando dele?
Sim, sim. Sofro dessa síndrome.
Qual o livro mais improvável que pode ser encontrado na sua estante?
Acho difícil classificar um livro como improvável numa biblioteca, mas tem um aqui em casa que é O livro dos demônios – manual de identificação de cada demônio e as defesas necessárias, que eu acho curioso porque não comprei nem ganhei. Quando uma empresa na qual eu trabalhei estava de mudança e estavam encaixotando coisas, botando um monte de tralha fora, alguém que eu não me lembro quem era surgiu com uns três livros na mão, dizendo algo como “Ó, a gente vai jogar fora, mas eu sei que tu gosta de livros”. E, de fato, eu gosto de livros, não consigo pensar em jogar fora. E ele está aí na minha estante. E talvez um dia eu leia. Quer dizer, já folheei para ver o que era. Mas agora, quando fui conferir o título, pensei “Ei, deve ser curioso ler isso”.
Se tivesse a chance de conhecer qualquer escritor, vivo ou morto, quem você escolheria? O que diria ou perguntaria a ele?
Cara, tu sabe que essa pergunta é uma sacanagem com qualquer um que gosta de ler, né? Tem escritores que eu acho que seria sensacional encontrar numa mesa de bar; outros, que eu teria medo de encontrar porque ficaria com receio de tudo o que eu disser se converter em asneira nos ouvidos deles. Mas, para escolher só um, pensei no Ítalo Calvino. Só que faria duas perguntas:
1) Ítalo, tá com um tempinho? (E se ele responder afirmativamente, prossigo.)
2) Então me diz aí: qualé que é da consistência?*
Qual o pior livro para se escrever uma crítica: aquele escrito por um amigo, inimigo ou parente?
Ah, acho que de amigo ou parente. Dá no mesmo. Não acho que criticar livro seja brincar de moedor de papel, acho que é fazer uma leitura do livro. Mas ainda assim é delicado quando as pessoas não sabem, ou podem não saber, separar a tua leitura do livro dos teus laços afetivos.
Você escreveu dois livros de contos, Azar do personagem e Quero ser Reginaldo Pujol Filho, além de participado de algumas antologias. Como leitor, você tem preferência por conto, poesia ou romance? Existe alguma explicação para o fato de que a maioria das pessoas prefere ler romances?
Não, não tenho preferência por gêneros na hora de ler. Uma época, quando comecei a frequentar a oficina do Charles Kiefer, lia muito conto. Bem mais do que os outros gêneros. Mas acho que era um processo de alfabetização. Hoje, não tem predominância. Talvez leia um pouquinho mais de romance por causa de resenhas, quando faço resenhas. Mas, por exemplo, quando viajo, procuro levar um romance, um livro de poemas, um de contos, ensaio, leituras para vários momentos. Gosto de tudo. E gosto dos inclassificáveis, coisas que bagunçam essas noções. Acho até que gosto mais disso.
E não sei se a maioria das pessoas prefere mesmo ler romances ou se isso é um mito no qual se acredita tanto que acaba se reproduzindo sem pensar. Sei que é mais fácil vender romance. Vi uma vez o Sérgio Faraco falar uma teoria muito simples num debate: é muito mais fácil para um livreiro recomendar uma narrativa longa, porque tem um plot, um assunto, um clima. O cara pode dizer “Esse livro tem um triângulo amoroso macabro na Jamaica”, “Esse livro é cheio de aventuras” ou “É um livro de amor”. Daí se perguntam para o livreiro sobre o que é o meu livro de contos, por exemplo, ele vai ter que dizer: “Olha, não tem um assunto, um tema. Na verdade, é um livro em que o autor presta homenagens e blábláblá”. E isso que o meu livro ainda tem uma amarração. Como explicar em um minuto, durante as vendas de Natal, sobre o que é Octaedro, Ficções ou Os lados do círculo. Complicado, né? Acho que isso faz com que se consuma mais romances, reforçando o estereótipo. Mas reconheço, me contradizendo um pouco (ou muito), que existe uma relação afetiva com os livros de narrativa longa que, em especial para o leitor que quer um livro “que me prenda, que não dê vontade de largar”. O sujeito pega um livro para ler durante as férias na praia. Aí os personagens do romance acabam virando companheiros de férias. Todos os dias você tem contato com eles, criam-se laços com a história e seus personagens. O que, numa leitura menos detida, digamos mais prazerosa, ou numa leitura para desestressar e relaxar (lê-se assim), é um pouco mais difícil obter com o conto. Embora seja possível. Bom, e poesia então é outra história, né? Poesia não dá e nem se deve ler “numa sentada”, que é uma coisa que as pessoas consideram um elogio brutal para um livro. Se fizer isso com um livro de poemas, perdeu o livro. Então poesia, sim, tem essa dificuldade eu acho.
* Referência ao livro Seis propostas para o próximo milênio, que reúne cinco conferências que Ítalo Calvino preparou para a Universidade de Harvard. Nelas Calvino fala sobre quais qualidades considera importante no trabalho artístico: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência. Cada conferência corresponderia a uma qualidade. Infelizmente, o escritor morreu antes de escrever a parte referente à consistência.
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