Ensaios

Os sonhadores: uma metáfora da pós-modernidade

O filme de Bernardo Bertolucci é um exemplo de obra cujo criador utiliza um momento histórico como uma alegoria do presente ou forma de transmitir uma mensagem de cunho universal

– 11/03/2015
Filme Os sonhadores, com Louis Garrel, Eva Green e Michael Pitt

Filme Os sonhadores, com Louis Garrel, Eva Green e Michael Pitt. Foto: divulgação.

 

Não resta dúvida que uma das marcas inconfundíveis do artista é sua capacidade de metaforizar a realidade ou uma época, transmutando-a numa mensagem de cunho universal. Nesse sentido grandes escritores como Flaubert e Milan Kundera e cineastas como Bernardo Bertolucci e William Wyler podem ser considerados grandes artistas.

Interpretar é correr riscos, principalmente, quando se trata de elucidar uma obra que trata de um momento da História, mas que possui grandes afinidades com o presente. A análise que se faz posteriormente, dada a vantagem do lapso de tempo que lhe aumenta a amplidão do estudo, muitas vezes pode descobrir motivos e mensagens novas que, à época da publicação da obra ou da concretização de um acontecimento, por exemplo, não puderam ou não ofereceram possibilidades de serem percebidos. Assim é que o Homero interpretado pela Arte poética de Aristóteles possui matizes que o próprio autor da Ilíada jamais teria tencionado imprimir aos seus textos, igualmente a releitura da Antiguidade Clássica realizada pelos grandes artistas do Renascimento criou um mito da Antiguidade perfeita, que posteriormente foi desconstruído por grandes estudiosos como Burckhardt. Ao se observar os arcanjos, as ninfas, as musas das pinturas flamengas dos séculos XVI e XVII, perceber-se-á que tais representações possuem os rostos, os gestos, o brilho e a placidez das pessoas que viveram naquela época nas Flandres, embora o objetivo dos artistas fosse pintar um passado ainda mais distante. É que o próprio intervalo de tempo entre o fato histórico e sua representação fomenta a reflexão e, consequentemente, a individuação da interpretação. Dessa forma o artista, não raro, utiliza-se do recurso de transportar seu enredo para um cenário longínquo, no passado ou no futuro, para ter mais liberdade de transmitir sua mensagem ao público presente. Com certeza nenhum outro cineasta conseguiria transmitir com tanta precisão, à época, a sutil mensagem do decadentismo, tão caro aos italianos, como Luccino Visconti no inesquecível Il gattopardo, um filme baseado numa obra, que àquela altura, pertencia ao presente, mas com um enredo centrado no passado.

A partir dessa perspectiva o espectador de Os sonhadores, de Bernardo Bertolucci, ao deixar a sala de cinema pode se perguntar se a alienação cultural dos protagonistas burgueses que não souberam interpretar a dimensão nem o significado dos acontecimentos de 1968 e o estreito limite entre realidade e ficção que leva os protagonistas a confundirem a representação (cinema) com a própria realidade não seria uma sutil alegoria dos tempos pós-modernos em que tão facilmente se confunde o ideal com o real, o coletivo com o individual.

A carreira cinematográfica de Bernardo Bertolucci pelos êxitos que obteve dispensa comentários, e no filme Os sonhadores o renomado cineasta consegue, mais uma vez, pôr em prática aquele princípio enunciado no início desse artigo, com a sutileza e a inteligência que somente um arguto observador da sociedade e da cultura de sua época sabe fazer. Nessa obra Bertolucci utilizando-se do expediente de retratar um período marcante da história contemporânea, o ano de 1968 e as manifestações na França, estabelece uma leitura tão precisa daquela época que se torna praticamente impossível ao espectador avisado não fazer uma conexão com nossa atual condição social, cultural e política. Esta conexão, talvez, tenha sido a razão de o filme ter recebido algumas críticas quando de seu lançamento. Bertolucci inspirou-se no livro de Gilbert Adair, The holly innocents, que trata de um triângulo amoroso entre dois irmãos franceses e um estudante americano que vai morar com estes após breve encontro na Cinemateca Francesa. O romance foi, em vários aspectos, mais audacioso que o filme, levando o sentido da sexualidade a um passo além, porém contendo a profundidade que este empresta ao Cinema. Analisando-se por este ângulo Os sonhadores chama mais a atenção pela questão sexual, dada a desembaraçada exibição de nus frontais e outras cenas íntimas. Porém, visualizar a película por este viés limita em demasia a gama de significados a que a obra se propõe. Além disso, não se deve olvidar que, antes de tudo, os personagens são cinéfilos, e é justamente neste âmbito que se encontra o fulcro de todas as questões que são levantadas pelo filme cujo enredo, em linhas gerais, aborda o cotidiano de três jovens (dois irmãos e um terceiro jovem que se torna amigo deles), sua rotina de isolamento, de alienação social e o choque entre gerações, pois, os pais dos irmãos, vez por outra, entram em choque com seus filhos. Os personagens principais levam uma vida isolada e indiferente, sustentada no fascínio pelo cinema. As conhecidas discussões sobre as razões da guerra, sobre a liberdade individual são mostradas. Entretanto, o que mais chama a atenção do espectador é a imensa atualidade dessas discussões, resultado, talvez, de uma feliz coincidência nos recortes da realidade daquela época ou de um lance de maestria do cineasta que conseguiu realizar a consonância entre o passado e a era pós-moderna.

A originalidade de Os sonhadores reside exatamente no princípio que embasa todas as criações que se celebrizam: a capacidade de pontuar, em qualquer época ou situação, aquilo que nela mais lhe conecta com o universal. Não foi com o objetivo de retratar a época da revolução de 1848, por exemplo, que Flaubert compôs A educação sentimental, porém com o fim de retratar o desencanto, que mais cedo ou mais tarde, atinge todos os seres humanos pelas revoluções e pelos destinos políticos do país, por força que o leitor, ao se deliciar nas páginas do célebre romance, identifica-se rapidamente com esse desencanto e com as peripécias dos personagens. Há, além disso, a questão da extemporaneidade de quem cria uma obra de fundo histórico. Será que é possível ao autor isentar-se totalmente de maneira que não se deixe contaminar pelas suas próprias concepções históricas ao narrar o passado? Os grandes cineastas que produziram filmes sobre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, num tempo mais próximo ao conflito, como William Wyler ou Stanley Kubrick, por exemplo, possuíam uma visão sobre as grandes conflagrações que, certamente, se distingue das concepções que o autor de Caçadores de obras-primas possui hodiernamente.

Em tempos em que a reflexão faz-se mais necessária, mas que as forças contraditórias da sociedade fazem-se mais presentes surge no autor a necessidade de encontrar novas formas de comunicar sua mensagem com a realidade presente. Foi assim quando em meio às convulsões políticas e sociais que agitavam a Itália de antes do Risorgimento Alessandro Manzzoni escreveu seu insubstituível Os noivos, fazendo transcorrer sua narrativa no século XVII, mas transmitindo um recado de insatisfação com o esfacelamento dos valores morais e das grandes instituições sociais ao público presente. Diferente, também, não foi a postura de Thomas Mann quando nos anos próximos à Segunda Guerra Mundial utilizou-se de uma saga histórica, José e seus irmãos, dentre outras obras, para apresentar à Europa e ao mundo suas convicções.

Os protagonistas de Os sonhadores tentam disfarçar seu isolamento prendendo-se à cultura, principalmente do cinema e creem que porque estão constantemente discutindo o que o cinema produz e o fato da vez, a Guerra do Vietnã, estão em sintonia com o momento histórico que estão vivenciando. Como forma de estabelecer o contraponto à trama Bertolucci introduz um jovem norte-americano que chega a Paris, numa daquelas emblemáticas viagens de pessoas de outros continentes que vêm embriagar-se de cultura na Europa, por considerá-la o supra-sumo da civilização, e que o escritor norte-americano Henry James soube retratar como ninguém. Como todos os enredos dessa natureza, que se tornam mais fortes e instigantes por meio dos embates de pontos de vista, o cineasta mostra em cena os pais dos irmãos gêmeos como seus antagonistas, contrários, em parte, ao modo de vida dos jovens, mas, como alguns heróis dos filmes da Nouvelle Vague, indecisos e impotentes, inclusive quando um dos filhos instiga o pai, um autor reconhecido, a envolver-se nos movimentos contrários à Guerra do Vietnã, ao que o pai veementemente se recusa.

Por fim, pode-se apontar, dentre muitos, dois pontos altos do filme: o momento em que os pais dos gêmeos viajam e deixam a casa ao dispor deles e de seu amigo norte-americano, e o final quando os gêmeos decidem pela luta armada nas manifestações de 1968, solapando tudo em que acreditavam do ponto de vista político e social. Além disso, não dá para esquecer a belíssima homenagem que Bertolucci faz ao cinema clássico através das referências de filmes empregadas nos diálogos dos protagonistas.

 

André da Costa Nogueira (pseudônimo: Medeiros da Costa) nasceu em Aracati (CE), é funcionário público e graduado em Letras/Português pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Suas referências literárias são Machado de Assis, Dostoiévski, Baudelaire, Nietzsche, T. S. Eliot, Ítalo Svevo, Joyce, Mann e Faulkner, entre outros. Participou de vários concursos literários e escreve contos, crônicas, poesias e ensaios.

 

Texto publicado na edição 1 da revista Eels.

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