Lendo no escuro

Traças e pipocas

Beto Canales fala sobre a relação entre cinema e literatura

– 20/01/2014
Traça

Fonte: Arthur’s Free Clipart

Sempre lembro de um cartum em que apareciam duas traças devorando um rolo de filme. Uma delas diz: “Prefiro o livro”. Sensacional a forma objetiva e engraçada que o autor encontrou para mostrar uma tendência bastante forte, também razoável e compreensível, que acontece cada vez com mais frequência e sucesso: livros que se tornam filmes.

Não é de hoje que cinema e literatura andam de mãos dadas. Há muito tempo, essas duas belas artes – uma bem antiga, e a outra mais recente – caminham e crescem juntas. Por vezes, um empurrãozinho aqui e outro ali, com a “senhora” ajudando a lotar salas de cinema, e a “adolescente” fazendo o mercado editorial entrar em estado de graça, tudo de maneira harmoniosa e sem prévias combinações.

A explicação para isso é simples: continuidade. Não da história propriamente dita, mas da vida curta da obra em si. Explico. Um escritor cria um romance belíssimo, bem escrito, bem estruturado, com uma linguagem apropriada e terá um público X. Seu público padrão. Depois, permanecerá nas prateleiras, na altura dos nossos tornozelos, escondido debaixo dos best-sellers (isso se ele tiver sorte de possuir uma editora com distribuição). Logo adiante, também com alguma sorte, estará nos balaios de descontos oferecidos em diversas feiras que vendem livros. Encerrando esse ciclo, somente a morte do próprio autor impulsionará mais alguns exemplares. Depois, o fim. “Caputz”. Sinistro, mas verdadeiro. Essa é a regra geral e, claro, possui exceções – mas não são delas que trato.

Um belo dia, porém, por um acaso desses do destino, algum cineasta gosta da história e resolve filmá-la. Evidente que passa por todos os tropeços e exigências comuns ao meio e – depois de buscar e conseguir patrocínio, licenças e todo o resto – produz a tão esperada obra.

É como mágica: o livro em que foi baseado o filme sai do imo e volta à moda. É lido, relido e comentado. Sua trajetória continua, enfim, tornando a literatura a grande vedete de tudo.

Um outro detalhe interessante são as particularidades dos espectadores e leitores. Embora uma boa parcela do público pertença às duas classes. Por vezes, o sujeito que está lá no cinema sentadinho comendo pipoca não leu e nunca lerá o livro. Da mesma forma que o leitor talvez nunca vá ao cinema. O resultado disso é a ampliação do leque de pessoas que conhecem, vivem a história. Claro que também existem os que irão ao cinema por causa do livro, e os que comprarão o livro em razão do cinema. Esses são, sem dúvida, os que mais aproveitam o que as duas artes têm para mostrar, além de incentivarem ambas.

A conclusão é que um ajuda o outro. Ouso afirmar que atualmente um depende do outro. Sei que parece estranho, mas, se levarmos em conta a quantidade de crítica e de publicidade que gira em torno da telona, veremos que a ideia não é tão lunática assim.

Já falei que os livros ficavam “na altura dos tornozelos, abaixo dos best-sellers”, o que é verdade em se tratando de literatura nacional. Todas as referências feitas até aqui foram para produtos de nossa querida terra brasilis. Se pensarmos em âmbito mundial, o fenômeno fica ainda mais espantoso. Observem, por exemplo, Anjos e demônios, do Dan Brown. A rigor, apesar de o livro ser relativamente bom de ler, até porque é fácil, não pode ser considerado “boa literatura”. É, na verdade, o que os críticos e mestres chamam de literatura de verão, ou de temporada. Não fará parte, certamente, do meio acadêmico. Ele usa uma fórmula bastante eficiente que desperta a curiosidade e coloca o pico de tensão sempre nas alturas. Isso torna a obra bastante popular (assunto para outro momento). O filme, por sua vez, é muito parecido. Tem de tudo: tiroteio, corrida de carros, efeitos, lutas, enfim, usa de todos os artifícios possíveis e clichês para se tornar popular. E, claro, consegue. Multidões foram ao cinema em razão do livro, e outras compraram o livro em razão do cinema. Perfeito. É pertinente mencionar que a crítica feita à Igreja Católica ajudou bastante, principalmente se considerarmos que o Vaticano “sugeriu” que os católicos não vissem o filme. Tiro no pé, evidentemente. Mas, mesmo sem essa mídia gratuita feita pelos senhores de anéis bonitos e roupas estranhas, o sucesso estaria garantido. Concluindo, os livros na altura dos olhos nas tão disputadas prateleiras também vivem cinema. Se beneficiam dele e o ajudam.

Além desse lado comercial mencionado, importante o suficiente para condenar à morte a melhor das histórias em caso de insucesso, tem o lado artístico. É uma sensação especial e enriquecedora identificarmos uma história, conhecida somente das letras, interpretada por pessoas de carne e osso, representada por cenários, movimentos, sons e música. É mágica. A mágica da arte transformando o que havia somente nas páginas de um livro e em nossa mente (o que evidentemente não é pouco) em uma história que passa à nossa frente como se tivéssemos outras vidas ou outros sentidos.

Menina comendo pipoca

Foto: Julie Elliott-Abshire

Enfim, tudo isso para explicar minha intenção aqui. Cinema e literatura. Estas duas aí ao lado são o motivo, o mote para esta coluna. Vou mostrar – ou pelo menos tentar – a forma como vejo uma e outra. Juntas ou – por que não? – separadas. A intenção é que o jeito como a maioria das pessoas veem cinema e leem livros, ou seja, nada técnico ou rebuscado, venha à tona. Algo relacionado com o sujeito que come pipoca no cinema, e derruba algumas no chão, ou alguém que lê de pantufas e dobra as folhas do livro para marcar a página em que parou. Ou seja, pessoas comuns, admiradores e amantes do belo, aqueles que são o verdadeiro objetivo dessas faraônicas indústrias, sem esquecer, contudo, que apesar de serem produtos de consumo, muitas vezes à venda como batatas, não deixaram de ser arte.

E já foi dito: “Sem a arte enlouqueceríamos”.

Se eu fosse a outra traça, ao ouvir “Prefiro o livro”, responderia sem pestanejar: “Prefiro os dois”.

 

 

Beto Canales é escritor de contos e narrativas longas, autor do livro A vida que não vivi. Também é um dos editores dos sites Esquina do Escritor (www.esquinadoescritor.com.br) e 3AM Brasil (www.3ammagazine.com/brasil). Cinéfilo assumido, escreve as suas críticas de filmes, além de outros textos, no blog Cinema e bobagens (www.cinemaebobagens.blogspot.com).

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