Romances (trechos)

Viva a música!

Foi o primeiro dia em que faltei à leitura de O Capital, e depois não voltei mais. Desde então me persegue essa vergonha matinal, que quer fazer com que eu apague e negue todas as coisas geniais que vivi na noite anterior, todas as pessoas novas… Bem, isso era no começo, já não dá mais […]

– 04/04/2015

Foi o primeiro dia em que faltei à leitura de O Capital, e depois não voltei mais. Desde então me persegue essa vergonha matinal, que quer fazer com que eu apague e negue todas as coisas geniais que vivi na noite anterior, todas as pessoas novas… Bem, isso era no começo, já não dá mais pra conhecer gente nova, não fique achando, não, são sempre os mesmos, as mesmas caras, e eu só gosto de dois: um que é um ótimo dançarino e tem um bigode de macho mexicano, e eu digo pra ele: “Esse bigode deixa você mais velho”, e ele responde, mostrando aqueles dentes grandes, bonitos, sorrindo: “E pra que ser jovem de novo? Como se não tivesse passado poucas e boas pra chegar até essa idadezinha minha. Quando comento alguma coisa dessa vida, não me deixo guiar pelo meus gostos. Falo sempre segundo conceitos, entendeu? Já o meu pensamento, esse não muda, mas, veja bem: no fundamental, porque, naquilo que é o sal da vida, quem é que vai ter peito de dizer alguma coisa? Se não, como explicar que eu continue vindo ver você toda noite, gatinha”: porque nunca deixaram de me chamar de gatinha. Do outro que eu gosto, melhor não falar, é um ladrãozinho, um desses magricelas que ainda usam camisetinha preta.

Bem, falava da vergonha. Eu digo a mim mesma, e brigo com ela: “Não tem razão de ser”, não, afinal eu curti a noite, consegui controlá-la e, depois de tê-la rendido, bebi-a todinha, mas espere aí: eu não sou como os homens, que caem pelas tabelas. Quando muito, termino meio descabelada, o que até me dá uns ares de mulher que anda sozinha pelo mundo, pelas ruas. E antes de fechar os olhos, juro que penso: “Isso é que é vida”. E durmo bem. Mas aí chega o dia e me diz (acho que é o sol anormal dos últimos meses): “Sai dessa vida”. Qual o propósito dessa consciência? E, além disso, eu vou lá mudá-la agora, que já virei especialista? Mas tamanho é o peso da maldita, que eu a imagino toda vestida de preto e de véu, que eu até faço minhas contrições, meus propósitos de me emendar. Não adianta: é só dar seis da tarde e acabam todas as minhas rezas. Eu acho que sim, deve ser o sol que não combina comigo. Experimentei não sair, ficar no meu quarto, perdida em pensamentos. Nada, não funciona. Então saio, meio zonza mas na maior inocência, cheia de boas intenções, e me enfio naquele turbilhão de gente que vai às compras, as senhoras, aqueles rapazes trabalhadores de bicicleta, e teve uma vez que estive a ponto de gritar: “Eu adoro essa gente!” Mas não o fiz. Já eram seis e caí na noite. Babalú me acompanha.

Isso foi na semana passada, esse sabadozinho mesmo. Não quero avançar demais, de repente acabo começando pelo rabo, que é difícil de agarrar, que fica batendo e se enrosca. Gostaria que o estimado leitor acompanhasse minha velocidade, que é energética.

Volto ao dia em que deixei de cumprir meu horário. Por que fiz isso, se estava gostando do Método? Principalmente nos últimos anos do colegial. Fui aplicadíssima, e estava com tudo em ordem pra entrar na Universidade do Valle e estudar arquitetura: segundo lugar no vestibular (a primeira foi uma magrinha de óculos, mal ajambrada de dentes, meio anêmica, que veio do Colégio de la Presentación Aguacatal), faltavam quinze dias pra começar as aulas e eu, sabendo das coisas, pois estudava O Capital com esses amigos meus, porque, sem dúvida, era uma nova etapa, talvez a definitiva desta vida que agora me dizem que é triste, que me dizem que é pálida, que eu fico só passeando pra cima e pra baixo e minhas amigas me encontram e dá-lhe que dá-lhe, que você está i-rre-co-nhe-cí-vel. Eu falo pra elas: “Esquece”. Eu já tinha esquecido delas antes, anyway, bastou uma só reunião de estudos pra rir na cara delas quando me ligaram pra me convidar prum programa na piscina: não sabiam que eu, saindo da reunião, esgotada de tanto compreender coisas, tinha ido com o Ricardito, o Miserável (é assim que eu o apelidei, porque ele sofre muito, ou pelo menos é o que dizia) até o rio. Nada mais nada menos: descobri o rio.

“Como é que eu não conhecia antes?”, perguntei, e ele respondeu, com a humildade de quem diz a verdade: “Porque você era uma burguesinha e, aliás, muito metida”.

Fiquei assim, de sobrancelha apertadinha, desconcertada diante da franqueza dele, e ele, todo afável (entre outras coisas porque estava a fim de mim), complementou: “Mas, depois do contato com esta água, você não é mais burguesinha. Agora é maravilhosa”. Eu, então, o que foi que eu não fiz quando ouvi esse elogio: me atirei de roupa e tudo na água, ergui os braços, quase não dava mais pra ver a grama de tanta espuma que eu levantei com meus movimentos bêbados chafurdando na água. Era o rio Pance, dos tempos pacíficos.

Então, eu ri na cara das minhas amigas e disse pra elas: “Piscina? Mas que piscina que nada, se a gente tem aí, bem perto, um presente da Natureza, com água corrente e cristalina, boa para os nervos, para a pele”.

Não me entenderam daquela vez e já não me entendem mais, encontro com elas, acompanhadas dos seus garotos, que me parecem tão brancos, tão direitinhos, bons demais pra mim, que sou como planta trepadeira de night club, e eu sei o que elas pensam: “Essa aí é vulgar. Nós somos meninas certinhas. Então, por que a gente se encontra nos mesmos lugares?” Não vou dar-lhes o gostinho de responder a essa pergunta, deixo pra elas. Em vez disso, penso nessa terra de ninguém que é o pedacinho de noite tomado pela festa, onde não tem nunca ninguém que curta mais do que eu, ninguém que seja mais amada (superficialmente, eu sei, mas esqueço, e é esse o meu problema) e também desejada, e quando elas vão embora cedo pensam: “Até que horas será que ela fica?” Sou a última, só para elas verem, e fico até me porem pra fora.

Perdi essa comichão do escrúpulo, que no final das contas não é igual àquilo que me morde no dia seguinte, aquele horrível sentimento matinal. Que o céu me perdoe, mas um dia, eram umas abomináveis nove horas da manhã, pensei em ligar pra elas, principalmente pra Lucia, que era mais amiga e um pouquinho mais divertida e generosa, pelo menos é assim que eu lembro dela, porque eu queria explicar meus motivos, minhas histórias. Não só pensei: liguei pra ela. Peguei o telefone, e quando ouvi o aparelho gaguejando o sinal de ocupado me atirei na cama, chorando, sozinha.

Agora sei que não tinha por que fazer isso. Há oportunidades melhores pra contar a sua história, e agora o leitor está ficando a par, minha coisinha linda. Ainda tenho minha vida nas mãos.

Volto ao meu dia. Esse Ricardito também tinha ligado pra mim, bem cedo, antes dos marxistas. É que não havia cruzado comigo à noite, naquela noite que, de algum modo perfeito, moldou esse dia em que minha história começa. Ele não sabia então que naquela noite, que foi profunda, foi toda, todinha minha, enquanto noventa por cento dos outros estavam sem pique e de olhos perdidos, eu sobressaí com meu vestido colorido e minha inesgotável energia. É assim que eu falo.

Pensei: “Podia ligar pro Ricardito, o rapaz lá do rio, e resolver que hoje iria, sim, deitar nas pedras ardentes, nua”. Mas uma menina nunca liga prum homem, isso é o que eu pensava e penso, sou muito novinha, que é outra das coisas que eles não me perdoam. E também que eu nunca ligo pra eles, claro.

Na frente do espelho, separei esse meu cabelo em duas grandes madeixas e abri os olhos até não dar pra ver mais minhas pálpebras, e minha testa ficar brilhante e as covinhas aparecer nas minhas bochechas. As pessoas também dizem: “Que olhos”, e então eu os fecho por um segundo, discreta. Se hoje tenho olhos encovados é porque naquela época já queria isso: sim, ter os olhos como os da Mariângela, uma gatinha que agora está morta. Queria eu ter também aquele jeito dela quando olhava meio de lado, nas noites em que dançava sozinha e ninguém chegava perto, quem é que ousaria, com aquela fúria que ia crescendo, até que não era mais ela que acompanhava a música: cheguei a vê-la totalmente fora de si, os olhos perdidos, mas com uma força no ventre que a sacudia inteira. Era aquela fúria que ela tinha dentro que a fazia seguir o ritmo.

Lembro que me dizia, quando a gente estava indo a algum lugar onde um gatinho nos esperava: “Não ande tão depressa. É melhor a gente se fazer esperar. Além disso, pode até ser que vamos encontrar alguém”.

Gostava que olhassem pra ela. Não gostava era que pegassem. Ela foi, até onde vai meu conhecimento, a primeira do Nortecito1 a entrar nessa vida, a primeira que experimentou de tudo. Eu fui a segunda.

 


[1Diminutivo de Norte, nome de um bairro de Cáli.

 

 

Andrés Caicedo nasceu em 1951 em Cáli, na Colômbia, onde morou até sua morte em 1977. Em sua breve vida, escreveu dezenas de artigos sobre cinema, várias peças de teatro, roteiros, novelas, vários contos e um único romance. Com apenas 25 anos, e após receber a primeira cópia impressa de Viva a música!, Caicedo suicidou-se.

 

Viva a música!, de Andrés Caicedo

Publicado pela editora Rádio Londres neste ano, Viva a música! é o único romance do colombiano Andrés Caicedo. A obra é narrada por María del Carmen, uma adolescente orgulhosa da própria beleza e pertencente à classe média. Com um monólogo surtado e excessivo, que mistura letras de música com reflexões e contrareflexões, María conduz o leitor pela cidade de Cáli da década de 1970, um caminho em que há violência, suicídios, mortes, gangues e muitas baladas.

 

Texto publicado na edição 1 da revista Eels.

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