Contos

Herói

Era simples: nada de bom poderia surgir de Ademar, ele era como um campo semântico de desgraças. Sua mãe morreu no parto. Seu pai quando ficou sabendo foi encher a cara no boteco perto do hospital. Voltou bêbado para ver o filho pela primeira vez e, tão concentrado nessa tarefa, não viu a plaquinha no […]

– 03/11/2015
Montagem com imagens de Vectorportal.com e  Jeff Stone/ENOTSdesign

Montagem com imagens de Vectorportal.com e Jeff Stone/ENOTSdesign.

Era simples: nada de bom poderia surgir de Ademar, ele era como um campo semântico de desgraças. Sua mãe morreu no parto. Seu pai quando ficou sabendo foi encher a cara no boteco perto do hospital. Voltou bêbado para ver o filho pela primeira vez e, tão concentrado nessa tarefa, não viu a plaquinha no chão dizendo “chão escorregadio” que estava ali depois da faxina. Simplesmente escorregou e chocou a cabeça contra o chão, e assim, Ademar era órfão em menos de três horas.

Ah, pequeno Ademar. Mandado para um orfanato, sempre quieto e sempre com medo do chão limpo, haviam contado a fatídica historia do seu pai. Pior ainda era ver uma grávida, ele se sentia culpado por elas, já que elas iriam morrer quando fossem ter seus filhos, e como vivia em um orfanato, a palavra “mãe” era uma lenda urbana. Os anos passam, e com eles algumas cicatrizes surgem. Simplesmente estava no lugar errado e na hora errada. A primeira vez que saiu do orfanato, ele viu dois carros se colidindo, um pedaço de vidro saltou contra seu rosto, e Ademar agora tinha medo de vidros e não conseguia se olhar no espelho mais. Mas tudo bem, ele nunca tinha gostado de se ver. Não havia problemas, não mais: ele encontrou conforto em uma caixa velha doada pelo vizinho do orfanato. Essa caixa continha várias e várias revistinhas de super-heróis. Ademar ficou maravilhado, sonhando em salvar o mundo! Seu rosto mutilado seria sua própria máscara!

Quando chegou à adolescência, ele descobriu as espinhas e a ereção. Infelizmente, a ereção sempre surgia quando ele via a tia da merenda sorrindo para ele, o que o fazia ficar na fila por um tempo, e assim levar algum empurrão de um colega do lado. Era sempre colegas, Ademar não tinha amigos, mas ainda tinha suas revistas, ainda tinha sua máscara, que era melhor do que a de qualquer herói: era seu próprio rosto!

Quando chegou à vida adulta, ele precisou sair do orfanato. Sempre tremendo quando qualquer carro aparecia na rua. Por isso, isolou-se em um apartamento de um cômodo, levou algumas roupas, suas revistas em quadrinhos. Estava em um apartamento que veio da ajuda do bondoso vizinho do orfanato, o bom velhinho até conseguiu um emprego de empacotador para Ademar em um supermercado, e isso teria sido lindo, caso o rapaz não tivesse sido roubado no primeiro dia de emprego. Apareceu atrasado, e como podemos esquecer? Foi surrado, durante o assalto, o bandido resolveu dar uma coça no garoto estranho para que este aprendesse como a vida poderia ser difícil.

Ademar, pobre Ademar. O que seria do mundo sem você? Ele se sentia bem pelas pessoas olharem para ele com pena. Elas se sentiam melhores, ele poderia fazer algo bom para elas. Então descobriu o álcool após comprar uma cerveja achando que era um refresco. Ademar vomitou e se sentiu bem novamente: pensou que estava retirando pedaços dele e que poderia crescer algo novo dentro dele. Continuou bebendo e bebendo. Ademar chegava de ressaca no emprego e mal dava conta de pagar o pequeno apartamento, ainda bem que o vizinho do orfanato ajudava com algumas compras. Afinal, esse bondoso homem queria redenção: quantas vezes Ademar não o ajudou? O velho não precisava mais comprar pornografia!

Olha, Ademar, você continua vivo, com um rosto talhado em vidro e em vida, e carregando as entranhas da sua mãe e o chão limpo do seu pai. Mesmo assim, ninguém nunca quis conversar com você? Bom, tirando o vizinho do orfanato. Mas as pessoas ainda olham para você, Ademar, para se sentirem bem! Você não é como um mendigo que elas não veem enquanto andam de salto alto ou com celulares que custam mais caro do que alimentar uma criança na África. Não, eles e elas amam você, Ademar! A caixa do mercado, onde você empacota, estava falando de você com uma cara de nojo. Ela deixa de notar os próprios braços salientes que a sociedade diz que é feio, porque a sociedade te acha feio, Ademar. Mas, ela se sente bela com você, pelo fato de esquecer quem é quando vê você fedendo a merda e a cachaça, com um rosto rasgado, carregando a morte de sua mãe com sua vida e tendo um ataque de ansiedade em todo o dia de limpeza! Você é o esquisito, Ademar! E com isso eles não são: o gerente esquece que trai a mulher com um travesti, que enfia um consolo em seu próprio rabo; o açougueiro esquece que sente prazer em mutilar animais; a mulher do chefe, quando te olha, Ademar, esquece que abortou duas vezes pelo fato de o filho não ser de seu marido! Ademar, você salva a humanidade de seus próprios padrões de moralidade autoimpostos! Você é um herói, e um herói tão grande que ninguém quer ser como você!

Ademar, o herói do momento, salvador da sociedade! Todos nós amamos você, Ademar, pelo simples fato de o asco que você traz às pessoas! O asco que você traz a nós! Bendito seja você e as suas feições asquerosas sendo combinadas com o seu andar patético e sua fala tímida! Mas um dia, Ademar, acorde e abra seus olhos sebosos. Ele acordou novamente, vestiu-se, resolveu colocar um sorriso no rosto em uma segunda-feira! Calma, sempre calma para atravessar a rua, uma criança aponta para ele, e a mãe do pivete repreende o filho. Agora Ademar também é um exemplo para as crianças, construindo uma juventude saudável! Que herói! Que coragem!

Chegou ao serviço e fez todos felizes novamente, mas, aquele dia seria trágico para o nosso herói: ao sair do trabalho, perguntaram a ele que dia era, e infelizmente, Ademar se lembrou: era seu aniversário! Ele não comemorava seus aniversários, afinal, seria o mesmo que comemorar a morte dos pais. Mas, ele não podia deixar que as pessoas notassem que estava mal, não esse tipo de mal. As pessoas ficariam com pena, e não com nojo do vagabundo do empacotador! Para piorar, escutou seu nome sendo chamado, e olhando para trás ele se deparou com seu chefe: “Olha, Ademar, não é por mal, mas você tem vindo embriagado ao trabalho, e alguns clientes não se sentem bem ao te ver”. Mas como assim? Pensou o nosso bravo herói. Teria ele se transformado em um vilão? As pessoas não mais se sentiam bem vendo a desgraça alheia? Não se sentiam mais confortáveis? Um vórtex se criou na cabeça de nosso destemido guerreiro, e ele, como em toda sua vida, apenas concordou com o chefe, concordou com o médico, com o vizinho do orfanato e com a igreja que o julgava um pecador por beber.

Caminhou para casa, um lobo solitário perdendo pelos e dentes a cada passo, um ser de carne viva que perdia sua máscara, seu rosto. Sentiu-se um inútil. Pobre Ademar! E agora? Enfiou a mão embaixo do sofá, guardado junto com suas revistinhas havia uma arma, sim! Uma arma, um último presente de um velho vizinho que queria que Ademar ficasse em segurança em um bairro onde predadores são a caça. Claro, assim o velho buscava redenção e mais uma oportunidade de receber uma visita feliz de Ademar. De repente, não mais que de repente, tudo se clareou: redenção. É hora, não é, Ademar? Se ele não pode salvar o mundo estando vivo, poderia se sacrificar por todos nós. Uma manchete de jornal falando sobre um merda suicida sempre te faz se sentir vivo! Colocou a arma na cabeça, mas precisava ver se fazia o certo, teria de ficar frente a frente com um espelho, com os vidros que cortavam seu rosto. Levantou-se e encarou o medo, mesmo assim, não se controlou: ansiedade, pânico! Lute, Ademar, o mundo precisa uma última vez de você! Respirou e apontou a arma para o espelho, apontou a arma para seu próprio reflexo enquanto tremia. Mas, o interessante era que seu reflexo era calmo, diferente de Ademar, seu reflexo apontava a arma para a própria cabeça! E assim, Ademar, fez seu último sacrifício, com um tiro tornou o mundo horrivelmente mais belo.

 

Henrique Silva Theodoro nasceu em uma pequena cidade do interior do estado de São Paulo. Cursou Letras na Unesp da cidade de Assis. Formado, é atualmente professor de redação e literatura.

 

Texto publicado na edição 2 da revista Eels.

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